sábado, 6 de julho de 2013

Solidariedade e Cooperação.

Solidariedade e Cooperação A vida do homem é um contínuo anseio: ou procura bens materiais ou busca ilusões. Se levado a certos limites, estimula o estudo e o trabalho fecundo. Para além de determinada meta, leva à prática da violência, à selecção brutal dos indivíduos ou dos grupos e à desumanização da vida social e internacional. Nos círculos cultos e esclarecidos, este espírito de conquista evolui pacificamente. Desenvolve-se no sentido de obtenção da virtude, do saber, do carácter, da perfeição. O sábio, o erudito e o investigador, que se consagram ao estudo dos problemas que os preocupam, levam a cabo um esforço benéfico voltado para a conquista positiva, procurando adquirir conhecimentos, alcançar ideias, verdades, certezas ou conceber técnicas. Porém, uma educação orientada no sentido da competição do egoísmo e da violência, associada ao refinamento dos mecanismos de embrutecimento, levam a que a espécie humana organizada em “sociedades” se comporte no planeta Terra como espécie predadora, aniquilando recursos, alterando equilíbrios e até invertendo evoluções. Apoiadas em valores quantitativistas, estas sociedades modificam a qualidade de vida e a própria mentalidade social. Passam a ser dominadas por uma febre incontrolável de conquista desaustinada de bens materiais ou de riquezas. E é assim que, apesar de se falar muito em solidariedade e cooperação, todos se lançam, consoante os temperamentos, à conquista de certos objectivos tidos como valiosos e sinais de êxito pela mentalidade social contemporânea: a celebridade, a glória, a luxúria, o luxo, a ociosidade. O mais vulgar e mediático é a celebridade. Geralmente, nem se toma sequer a consciência de que a celebridade desprovida de conteúdo é um êxito vazio. O dinheiro e as propriedades, encarados com um fim em si mesmo, é outra expressão do referido êxito. Mas a expressão mais elevada do dito êxito é o Poder, considerado este como a capacidade, real ou virtual, de tomar e fazer cumprir decisões que afectam a vida própria e as alheias. É aqui que se identifica muitas vezes a distância desproporcionada que separa o demérito de algumas pessoas do estatuto social em que vivem. Uma inevitável preocupação surge à luz quanto se pensa em tudo o que ficou dito e perguntamos a nós próprios: que pecados originais contaminam o homem e as variadíssimas formas sociais, atraindo-os para esses falsos êxitos, o orgulho e a malevolência? Aqui, as opiniões dividem-se. Todas as grandes religiões preconizam o domínio da “carne”. E aconselham a vencer, pelo espírito, a exteriorização dos seus apetites. A condição animal do homem seria então o obstáculo impeditivo da integração na harmonia cósmica, a conseguir através do espírito universal, dos valores da renúncia, da purificação e da ascese. Mas admitem outros que, pelo contrário, a adulteração da humanidade se fica a dever aos elementos corruptos da vida social. É a explicação dos mitos bíblicos. Adão e Eva foram corrompidos pela serpente – o símbolo do conhecimento. E até alguns filósofos – como Rousseau – defendem a existência do “bom selvagem”. É certo que a vida social pressupõe a realização de esforços próprios por parte de cada um. São legítimos e enobrecedores. Mas tais esforços devem ser convergentes e não antagónicos. O que se passa é que o mundo, embora nos pareça grande, é suficientemente pequeno para inter-relacionar todos os nossos interesses. Convém, pois, harmonizá-los, em vez de pô-los em conflito. Os produtores precisam dos consumidores; os trabalhadores manuais precisam dos trabalhadores intelectuais. Os homens grosseiros beneficiam com a delicadeza das almas sensíveis. Os ociosos lucram com o esforço e o exemplo dos homens activos, e por aí adiante. Sendo hoje altamente gregária, a humanidade vê a sua equação de sobrevivência posta também em termos da compreensão de que a vida social só pode existir com base na cooperação e na solidariedade. A partir de certos limites, a luta tem como consequência a impossibilidade de se desenvolver um trabalho fecundo e contínuo, atiçando ódios e suprimindo garantias necessárias a qualquer actividade eficaz e produtiva. A fraqueza e insuficiência de cada indivíduo devem ser fortalecidas pela fraqueza e insuficiência dos seus semelhantes. Todos precisamos uns dos outros. E com as nações dá-se o mesmo que com os indivíduos membros da sociedade. Alguma coisa deve ser cedida para garantir o todo. Neste ponto de vista, ganhamos pelo que damos. Procurar justificar logicamente toda a ordem de desgraças que os homens têm derramado sobre si próprios na ânsia de atingir os falsos êxitos tem sido uma constante no processo que antecede o acender dos conflitos e o posterior varrer das cinzas resultantes do fogo da violência. Poderá ir-se iludindo o assunto com a procura das causas em factos importantes e espectaculares, em vez de os identificar naqueles actos individuais “infinitamente pequenos”, que o simples exame retrospectivo, ou “exame de consciência”, ajuda a dominar e a disciplinar. Uma sociedade onde esta reflexão não esteja enraizada nos hábitos pessoais não pode ter condições de desenvolvimento. E, portanto, não elabora mundivisões originais e adequadas à experiência do dia-a-dia e do progresso sofrendo assim uma carência que nada pode colmatar. Essa sociedade fica entregue à confusão, correndo o risco de não identificar o essencial e de sacrificá-lo ao acidental. E quando o essencial e o acidental se encontrem confundidos, a anarquia de valores e ideias torna-se inevitável, depressa surgindo equívocos e fracassos que parasitariamente minam o edifício social. É no seio dos mecanismos de intervenção destas sociedades em que vivemos que a filosofia rosacruz desempenha o seu papel. A sua missão decisiva, neste campo, é a de ajudar a compreender que o ser humano é um universo em miniatura e que tem dentro de si as mais estranhas forças, às vezes difíceis de interpretar. E, também, ajudar a conhecê-las dentro do possível, e também dentro do possível dominá-las, para que o ser humano não se torne num motivo de crítica e numa fonte viva de desordem. F. M. C.

A Relíquia.

Eça de Queiroz viveu em Coimbra de 1861 a 1866, em tempos de "grande tumulto mental", com a chegada por caminho de ferro, trazendo da França e da Alemanha "torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesse humanitários..." Lia-se de tudo, de Hegel a Hugo, tornado profeta e justiceiro de reis, a outros autores que abalavam mais fortemente a arca das crenças tradicionais: Feuerbach, Renan, etc. E descobre, com assombro, a Bíblia. Em 1869 Eça visita ao Egipto, na companhia do futuro cunhado, o conde de Resende. Aí lhe é dado assistir à inauguração do canal do Suez, que mais tarde descreverá com mestria. Esta viagem permite-lhe visitar ainda a Palestina, visita esta que veio a dar como frutos O Egipto (só publicado depois da sua morte) e A Relíquia. Para compreensão integral da obra e do pensamento do autor, convém lembrar que Eça fazia parte do grupo do Cénaculo, ao qual pertenciam Antero do Quental, Guerra Junqueiro e Oliveira Martins entre outros. O Cenáculo não discutia só literatura. Propunha-se também organizar um plano de acção formação ideológica, de que resultariam as conferências do Casino. Foi Antero do Quental quem pronunciou, em 22 de Maio de 1871, o discurso de abertura das Conferências do Casino. Falou sobre O Espírito das Conferências – O Realismo como Nova Expressão de Arte. As reacções não se fizeram esperar. Os conferencistas foram logo acusados de espalhar ideias causadoras de desgraças. A sexta conferência, de Salomão Sáraga, Historiadores Críticos de Jesus, já não pode realizar-se. No Casino de Lisboa, onde se realizavam as conferências, a polícia afixou uma portaria, assinada pelo Marquês de Ávila e de Bolama, com data de 26 de Junho de 1871, proibindo a sua realização. Porém, a sensibilidade de Eça não podia deixá-lo indiferente a todas estas limitações da sua época. E depois de uma fase inicial, em que mistura o romantismo com o realismo, descoberta a Bíblia da forma singular como descreve, a evolução do espírito de Eça levou-o a escrever A Relíquia, uma crítica certos comportamentos religiosos. Em Maio de 1887 A Relíquia estava pronta para venda. Causou logo uma estranha emoção no público conhecedor do autor. Lidas só algumas páginas percebe-se de imediato que Eça irá fazer uma análise do binómio realidade/aparência, vida/morte, "a nudez forte da verdade, oculta pelo manto diáfano da fantasia", que terá como fulcro a visão onírica de Teodorico, cuja existência foi marcada por factos relevantes e também opostos: nasce quando Cristo morre "...numa tarde de sexta-feira de Paixão", e a mãe morre quando Cristo ressuscita "...ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Aleluia". O centro deste romance de peregrinação e descoberta é a visão de Teodorico Raposo, o Raposão nos meios académicos. No sonho, Teodorico, recua na História, entra no Pretório onde Pilatos julga o profeta da Galileia, acompanhado pelo sábio Dr. Topsius. Vai de Jericó ao Gólgota, entra em casa de Herodes e de Gamaliel. É uma viagem à descoberta da realidade de uma Jerusalém oculta ao Teodorico mundano e venal, a incarnação da religiosidade farisaica, adulterada, simplesmente observante, que só lhe permite trazer do trajecto palestiniano a sua relíquia sensual, a verdade dos sentidos, a "camisa imunda" da luveira. A jornada de Teodorico assume o aspecto simbólico de uma viagem iniciática, que se resume na busca da verdade, da paz, na procura e descoberta de um centro espiritual, ainda motivado por hábitos familiares onde o autor vê espelhada a superficialidade religiosa da sociedade lisboeta. Jerusalém, o centro espiritual da cristandade, revela-se uma desilusão – pior que Braga! – porque, na realidade, as iniciáticas capazes de promover o enriquecimento autêntico e o genuíno crescimento espiritual, são as que se realizam no interior do próprio ser. A viagem que é uma fuga de si mesmo nunca terá êxito. Mas as viagens são também formas de preparação para a iniciação, pela reflexão que proporcionam. Esta marcha para o centro de si mesmo, que se exprime na procura da terra prometida e pela peregrinação, é a que vemos, por exemplo, nas viagens de Eneias, de Ulisses, de Dante, etc. A literatura universal dá-nos outros exemplos diversos de viagens que, sem terem o alcance dos símbolos universais e tradicionais, são significativos em diferentes graus, mesmo que sejam apenas satíricos e moralizantes, como o Pantagruel, de Rabelais, ou As Viagens de Guliver, de Swift. N’A Relíquia, Eça faz a distinção entre verdades de razão e verdades de facto, sejam elas do ponto de vista da ciência ou da religião. Nela está implícita a pergunta "Que significa ser verdade"? É que é próprio das religiões tomarem como verdadeiro o objecto ou conteúdo das suas crenças, com base em juízos evidentes. E se há uma razão para acreditarmos nos juízos que apresentam as suas verdades, não haverá razão suficiente para aceitarmos a sua validade, nem um fundamento suficiente para a sua validade objectiva. A leveza da obra tem, pois, o condão de nos fazer reflectir sobre a ilusão e a realidade, lembrando que o "mundo real" é independente dos sentidos. A "aparência da realidade" é que depende deles. A leitura de A Relíquia permite desmistificar não só a Religião mas também a Ciência, ao abalar, por assim dizer, a estabilidade das convicções determinadas por decreto. Os romances de Eça foram instrumentos de actuação num vasto movimento de reforma da sociedade portuguesa da época, começando por renovar as consciências. Animado pelos desígnios anterianos de reforma e revolução, Eça de Queiroz encontra-se, na última fase da sua vida literária, com Tolstoi e Francisco de Assis, como se vê na Vida de S. Onofre, onde descreve as diversas fases de uma experiência mística, mostrando como aspira a uma revolução religiosa da humanidade, como solução para a totalidade dos problemas humanos. Eça de Queiroz foi um exemplo de probidade intelectual e honestidade de processos e de esforço de análise, na linha de criação de Geral Messadié, o conhecido autor de quem Eça foi, pode-se dizer, o precursor em Portugal. Possuidor de raros dotes de observação e ironia, de estilo original e colorido, conquistou um lugar na galeria dos grandes escritores da sua época (1845-1900). Casimiro Ferreira de Brito