contos sol e lua

contos sol e lua

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

As flores do mal.


A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE

Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!
Charles Baudelaire.

Remorso Póstumo.


Quando fores dormir, ó bela tenebrosa
Em fundo de uma cripta em mármore lavrada
Quando tiveres só por alcova e morada
O vazio abismal de carneira chuvosa;

Quando a pedra, a oprimir tua fronte medrosa
E teus flancos a arfar de exaustão encantada,
Mudar teu coração numa furna calada
Amarrando-te os pés na rota aventurosa,

A tumba, confidente do sonho infinito
(Pois toda a vida a tumba há de entender o poeta),
Pela noite imortal de que o sono é prescrito,

Te dirá: "De que serve, hetaira incompleta,
Não teres conhecido o que choram os mortos?"
E os vermes te roerão assim como os remorsos.
Alan Poe.

A Cidade do Mar.


Olhai! a Morte edificou seu trono

numa estranha cidade solitária

por entre as sombras do longínquo oeste.

Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores,

foram todos buscar repouso eterno.

Seus monumentos, catedrais e torres

(torres que o tempo rói e não vacilam!)

em nada se parecem com os humanos.

E em volta, pelos ventos olvidadas,

olhando o firmamento, silenciosas

e calmas, dormem águas melancólicas.



Ah! luz nenhuma cai do céu sagrado

sobre a cidade, em sua imensa noite.

Mas um clarão que vem do oceano lívido

invade dos torreões, silentemente,

e sobe, iluminando capitéis,

pórticos régios, cúpulas e cimos,

templos e babilônicas muralhas;

sobe aos arcos templos magníficos, sem conta,

onde os frios se enroscam e entretecem

de vinhedos, violetas, sempre-vivas.



Olhando o firmamento, silenciosas,

calmas, dormem as águias melancólicas.

Torreões e sombras tanto se confundem

que é tudo como solto nos espaços.

E a Morte, do alto de soberba torre,

contempla, gigantesca, o panorama.

Lá, os sepulcros e os templos se escancaram

mesmo ao nível das águas luminosas;

mas não pode a riqueza portenhosa

dos ídolos com olhos de diamante,

nem das jóias que riem sobre os mortos,

tirar as vagas de seu leito imóvel;

pois, ai! nem leve movimento ondula

esse imenso deserto cristalino!

Nem ondas falam de possíveis ventos

sobre mares distantes, mais felizes;

ondas não contam que existiram ventos

em mar de menos espantosa calma.



Mas, vede! Um frêmito percorre os ares.

Uma onda... Fez-se ali um movimento!

e dir-se-ia que as torres vacilaram

e afundaram de leve na água turva,

abrindo com seus cumes, debilmente,

um vazio nos céus enevoados.

As ondas têm, agora, luz mais rubra,

as horas fluem, lânguidas e fracas.

E quando, entre gemidos sobre-humanos,

a cidade submersa for fixar-se no fundo,

o Inferno, erguido de mil tronos,

curvar-se-á, reverente.
Allan Poe.