A característica mais saliente das heroínas femininas épicas apresentarem múltiplas aparências, múltiplos rostos, múltiplos semblantes, geralmente três, tendo em consideração o número simbólico sagrado dos Celtas, o qual tanto se apresenta com a forma de tríade como de triskel, a tripla espiral que, girando à volta de um ponto central, simboliza por excelência o universo em expansão.
As heroínas aparecem, por isto, com inúmeras aparências e nomes, em diferentes épocas e em encarnações sucessivas. Referindo-se em primeiro lugar à tríplice Deusa Brighid, que se diz filha de Dagda, e que vem a ser nem mais nem menos que a Minerva gaulesa de quem fala César, Deusa das técnicas, das ciências e das artes, que os cristãos recuperaram com o vocábulo de Santa Brígida, atribuindo-lhe a fundação do célebre mosteiro de Kildare, antigo lugar de extrema importância do culto druídico.
Ora, esta Brighid é também, com o nome de Boann, a mãe de Oengus, o Mac Oc, que concebeu e deu à luz durante o espaço temporal da noite de Samhain, ou seja, simbolicamente, durante a abolição do tempo, a eternidade. Brighid encama a vida eterna e, o seu nome, derivado de Bo Vinda, “vaca branca”, mostra bem até que ponto se encontra associada a um alimento inesgotável, o leite, elemento indispensável aos povos exclusivamente nómades e pastores, como era o caso dos celtas. A simbologia do seu nome dará os seus frutos e Boann toma-se o rio Boyne (grafia moderna) que fecunda com as suas águas doces um vale verdejante ao redor do qual se situam os grandes outeiros feéricos, que são domínios dos Deuses. E se o nome Brighid (que significa poderosa, alta, luminosa) é extremamente significativo, Boann, representando a riqueza avaliada em cabeças de gado entre os celtas, constitui a alma de uma sociedade onde predominam claramente as tendências ginecocráticas.
MorrighanO terceiro rosto de Brighid-Boann, o de Morrígane (genitivo de Morrigu ou Morrighan), filha de Ernmas, uma das personagens mais marcantes das tribos da Deusa Dana. O que nela melhor se evidência em particular na narrativa da Batalha de Mag-Tured, é o fato de se tratar de uma divindade guerreira temível para os seus inimigos durante os conflitos, enquanto exortava os guerreiros a combaterem com encabeçamento. O furor guerreiro de que ela dá provas abundantemente desdobra-se num furor sexual desabrido que a transforma senão numa divindade do amor, ao menos numa espécie de Deusa do erotismo. A fúria guerreira e a sexual andam assim a par e nos prolongamentos da epopéia celta encontram-se numerosas mulheres guerreiras que têm poderes mágicos e são especialistas na arte militar, ao mesmo tempo em que são iniciadoras dos futuros heróis, como é o caso, por exemplo, de CuChulainn ou de Finn Mae Cool.
O nome de Morrigane (Morrigu ou Morrighan) que significa grande rainha, evoca o da fada Morgana das lendas arturianas e do ciclo do Graal, tratando-se, em qualquer dos casos, do mesmo arquétipo, ao mesmo tempo guerreiro, sexual e mágico. A Morrigane da epopéia irlandesa toma muitas vezes o aspecto duma gralha, chamando-se então Bobdh.
A analogia com Morgana é evidente, pois ela e as suas companheiras da Ilha de Avalon possuem precisamente o mesmo dom de se metamorfosearem. Além disso, é de crer que a mulher feérica que leva um ramo de macieira de Afallach ao herói Bran, filho de Fébal, antes de levá-lo a empreender uma estranha navegação, seja a própria Morrigane, embora o seu nome não seja pronunciado neste episódio. “Porque não havia de reinar a grande rainha nesta terra bem aventurada de frutos maduros durante todo o ano e onde não existe a doença, a velhice e a morte?” Seja como for, a ilha misteriosa de Ynys Afallach é o equivalente, quer lingüístico quer mitológico, da ilha de Avalon, a fabulosa Insula Pornorum para a qual convergem todos os fantasmas da humanidade sofredora.
Na epopéia celta, no entanto, o amor não é um sentimento isolado, fazendo parte das grandes mutações que se operam no universo, tudo se dirige, por entre as diversas peripécias psicológicas, para uma dimensão cósmica à qual ninguém consegue escapar. O que é posto em relevo é muito menos a natureza fatal da paixão amorosa do que a sua necessidade metafísica. Acima de tudo, procura se transmitir a idéia de que, a existir um Deus, ele só pode ser o amor, pois este constrói o mundo e a mulher, que é iniciadora por essência, é capaz de dar, com o seu amor, um segundo nascimento, o nascimento na eternidade, àquele que escolheu amar.
Existe muito a idéia, formada ao longo dos tempos, de que a epopéia não deixa nenhum espaço para a vida afetiva, para o estudo do comportamento psicológico dos heróis, cuja descrição permanece demasiada, por vezes, ao nível do exterior, estereotipada segundo as normas do gênero. Naturalmente, as personagens das epopéias são arquétipos carregados de significação simbólica, mas não deixam, por isto, de serem dotadas de reações humanas e, por causa disto, de vida interior. Há um aumento das qualidades, aumento que é indispensável para se pôr em destaque as ações fora do comum. E verdade que existe também uma simplificação destinada a inserir as personagens e as ações num determinado quadro acessível a um público que não compreende a profundidade e as sutilezas da psicologia.
Apesar disso, não se deve esquecer que os heróis são humanos, mesmo quando são apresentados como sobre-humanos. E tanto nas narrativas épicas da antiga Irlanda como nas da antiga Bretanha, são seres humanos que descrevem outros seres humanos que, ao atravessarem a vida, tanto passam por situações de incerteza, de angústia e de grande sofrimento como, por outro lado, também são capazes de viver grandes alegrias e de desfrutar de momentos de grande felicidade.
Para que o objetivo se realize, toma-se necessário que se viaje para as estranhas fronteiras do real, aí onde o sonho e a realidade formam duas vertentes duma mesma e única montanha.
Jean Markale – A Grande Epopéia dos Celtas.