segunda-feira, 31 de março de 2014
Segue o Teu Destino.
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis
À procura da felicidade .
Este mito conta a história dos caminhantes que viajavam para Atenas e eram atraídos por Procustes que lhes oferecia abrigo e comida. Uma vez deitados, Procustes amarrava-os e verificava se cabiam na cama, cortando-lhes as partes sobrantes, se fossem demasiado grandes, ou esticando-os dolorosamente, se fossem muito pequenos.
Esta narrativa constitui uma metáfora de uma parte da nossa vida. Atenas simboliza o centro dos nossos objectivos, o sucesso a atingir, o êxito que delineámos. Mas nós não somos os únicos autores desta construção mental, do que idealizámos para nós. Os nossos pais começaram desde cedo, estabelecendo patamares que gostariam de ver realizados, depositando em nós muitas expectativas. No entanto, na maior parte das vezes, o seu sonho ainda menino não tem em conta a nossa singularidade, as nossas possibilidades e tendências, traços que a Astrologia ensina a identificar. O bebé que recebem é uma projecção do ser ideal, distante do ser real.
Deste modo, Atenas é a metáfora de felicidade que varia consoante a cultura em que nascemos, o grupo social, a educação que recebemos, o sexo e a religião em que nos encontramos integrados. Atenas resulta, assim, de um triângulo nem sempre em equilíbrio: do meio envolvente, do que desejamos e do que os outros esperam de nós, aos níveis familiar, afectivo, profissional e social.
Desde que nascemos que nos empurram para Atenas, ensinando-nos, moldando-nos, castigando-nos ou premiando-nos, durante as sucessivas etapas da infância e da juventude. Primeiro a família, depois a escola, o grupo de amigos, vamo-nos moldando, sempre em função de padrões comportamentais, em busca de sucesso, de reconhecimento, de aprovação, de afecto.
Este processo de automutilação psíquica e de sacríficio desmedido acontece-nos amiúde e de forma inconsciente, muitas das vezes: quando a família nos crítica por determinadas atitudes ou devido a traços da nossa personalidade, quando o grupo nos rejeita por algum aspecto do nosso carácter, quando somos humilhados pela imagem física, quando sentimos que podemos ser abandonados por uma determinada atitude e tememos actuar, quando as memórias nos magoam e as amachucamos no fundo de nós, quando adoptamos posturas para não perdermos o emprego ou para subirmos na escala social. Desmembrando-nos ou esticando-nos, lá vamos a caminho de Atenas, aquela que projectámos, a terra prometida.
O processo de moldagem – através do castigo, do prémio, da humilhação, do medo, da culpa, do julgamento social, da dor - de adaptação à cama de Procustes é dolorosa porque vamos abdicando de partes de nós, esquecendo outras, adormecidas e jogadas para o fundo do nosso íntimo, sacrificando-nos até não podermos mais. Aprendemos, ainda que distorcidamente, que devemos tudo isso para não sermos abandonados, rejeitados, humilhados, para não deixarmos escapar a felicidade, o sucesso profissional, o amor.
Com o tempo, vamos perdendo a autenticidade, afastamo-nos da nossa natureza divina, amorosa e livre. Ficamos presos à cama de Procustes. Corremos sérios riscos de nos tornarmos inseguros, medrosos, ansiosos, amargos, intolerantes, perdendo pouco a pouco a autoestima. Vamo-nos isolando em terrenos íntimos, descrentes de que alguma vez atinjamos Atenas, mas, ainda assim, ela permanece como a terra prometida, até se tornar uma imagem distante, embaciada, difusa.
Quando somos lançados em ciclos de crise profunda, somos convidados a descer ao mais íntimo de nós. Aí, olhamo-nos e vemo-nos a caminhar coxeando, porque mutilados; perdemos o equilíbrio, a segurança no andar. O sacrifício trouxe-nos um cansaço que secou a alma. Ao que sobrou de nós, juntam-se anos de medos, de culpas, de cansaços, de humilhações, de dor, de ressentimentos, de mágoas. Olhamos pedaços de nós que foram esquecidos, adiados, cortados e jogados fora.
As crises podem ser processos de recuperação do nosso ser, de retorno à nossa autenticidade, de (re)decoberta da nossa natureza divina. Só nós podemos iniciar a mudança, só nós podemos resgatar-nos do processo de mutilação e de sacríficio desmesurado a que concordámos em nos submeter. Só nós podemos libertar-nos do que nos oprime e restringe. Só nós podemos sonhar Atenas, de novo, em função do que somos, do que queremos, do que valorizamos, do que é autêntico e verdadeiro para nós, do que amamos. Só nós podemos devolver a nós próprios a inteireza perdida.
Maria Coriel.
O Tempo da Serpente.
Escolhemos habitar um tempo de transição para o qual julgamos não estar preparados. A mudança traz múltiplas transformações dentro e fora de nós que, pela sua rapidez, nos convocam a responder de forma igualmente rápida e decidida.
No entanto, escolher num período caracterizado pela dispersão, pela mudança, pela incerteza, pelas dificuldades torna-se um desafio às nossas capacidades, ensonadas por alguns anos de facilitismo e alguma apatia. De todas as faculdades há uma que, neste tempo, precisamos de desenvolver: o poder de regeneração aos níveis interior e exterior. Somos, assim, semelhantes à serpente que despe a pele velha e cujo o próprio corpo tem a capacidade de se regenerar.
Empurrados pelo instinto de sobrevivência, não podemos ser levados pela emoção numa corrente desabrida. É preciso parar, renascer, equilibrando o lado mental e afectivo, seguir uma orientação, ter um objectivo a cumprir de cada vez; saber também visualizar o resultado esperado.
Para que aflore em nós o novo, há uma casca velha e pesada que precisamos de abandonar: a lamentação, a autocomiseração, a vitimização que faz de nós presas fáceis da indolência e da insegurança.
No entanto, antes de renascer muitas questões necessitam de ser equacionadas: faremos nós aquilo de que realmente gostamos?Gostamos do que fazemos, mas necessitamos de renovar o modo como o fazemos? Deitamo-nos agradavelmente cansados ou frustrados por não termos feito aquilo de que gostaríamos? Gerimos bem o nosso tempo? Somos suficientemente disciplinados para cumprirmos o que estipulámos? Fomos generosos connosco e com os outros? Sentimo-nos conectados conscientemente com o nosso interior e com o divino?
Estas e outras perguntas podem ser aclaradas durante o processo de regeneração que acontece muitas vezes durante a vida e se processa por ciclos mais ou menos lentos. Vagarosamente, umas vezes por nossa iniciativa, outras por imposição da vida, vamos abandonando as cascas grossas que pesam, magoam e atrasam o nosso processo evolutivo.
Se escolhemos viver na transição entre dois tempos, devemos consciencializarmo-nos de que chegou o tempo de arrumar o quarto interior e de participar também na reorganização exterior em marcha, numa grande parte dos países. Chegámos ao final de uma estação; é tempo de colocar de lado o que nos faz dispender energia desnecessária, abandonar hábitos nocivos, deixar para trás padrões de pensamentos negativos, revitalizar a fé, reencontrar quem somos; observar se quem somos coincide ou não com quem nos tornámos. As fissuras que abundam no exterior quer sejam em forma de guerras, divisões entre famílias, atritos entre países, entre outros, espelham a divisão existente em cada um de nós.
Renascer é um exercício semelhante ao arrumar o roupeiro em fim de estação; pomos de lado o que está desadequado ao tempo presente, usamos apenas o necessário e adequado ao novo tempo. É preciso ter coragem e sentido prático para deitar fora o que já não serve o nosso momento evolutivo.
Do poder de regenerar não só faz parte aprender a reutilizar, reciclar mas também aprender a lidar com o corte, com as separações, com as fissuras. Regenerar é sinónimo de mudança, delineando com segurança o que já não queremos voltar a viver e a ser. Regenerar é sinónimo de transformação criativa; renascer deverá ser um acto con(sentido).
Maria Coriel.
O Salmo 133.
Salmo é uma composição poética em que as palavras e as idéias têm ritmo. São mais conhecidas as composições religiosas, entoadas como hinos de exaltação à fé. Os antigos hebreus usavam cantá-los nas cerimônias, acompanhados de instrumentos musicais de cordas ou sopro.
O Antigo Testamento imortalizou 150 dessas composições, escritos por diversos autores, entre eles destacando-se o Rei Davi, que viveu, provavelmente entre 1015 a 975 a.C. O Saltério abriga Salmos de quatro categorias literárias: Salmos de Louvor, de Ação de Graças, de Lamentação e Súplica e Salmos Sapienciais. Entre esses últimos, encontra-se o Salmo 133, objeto deste trabalho. Há dois critérios para a distinção de um salmo sapiencial: o estilístico e o temático. É sapiencial o salmo que induz à reflexão, que traz preceitos, comparações e ilustrações tomadas da natureza, perguntas retóricas e advertências. Já os critérios temáticos caracterizam-se pelo estudo das Leis divinas como fonte de bênção e felicidade; a meditação dos mistérios da fé, a confiança pessoal em Deus, o valor da Justiça como sinônimo de vida espiritual e, sobretudo, o homem justo como modelo de imitação e a antítese entre justos e ímpios. A tradução dos salmos para o português e outros idiomas modernos apresenta muitas vezes divergências entre o texto original e, não raramente, divergências entre uma tradução e outra no mesmo idioma. Até mesmo a numeração dos salmos pode apresentar divergências entre as várias versões impressas da Bíblia. Todavia, o sentido almejado pelos autores é mantido em todas as versões e os Salmos mantém seu valor sugestivo e inspiratório, de fácil e profunda ressonância na alma humana e cristã, tão necessitada de converter em oração sua conturbada experiência no mundo atual. O Salmo 133 não escapou dessas divergências. Em algumas versões, ele nos é apresentado como 132. Suas palavras sofrem pequenas alterações semânticas, como “viver” e “habitar” em união e outras diferenças que não são o objeto deste estudo. Isto porque o Rito Escocês Antigo e Aceito, para colocar um fim na polêmica, adotou uma versão única, sob o número 133, e reproduziu suas palavras no Livro do Ritual do Aprendiz Maçom: “Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união!”. É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla de suas vestes; como o orvalho de Hermom, que desce sobre os montes de Sião; porque ali o Senhor ordena a benção e a vida para sempre.”.
De sua simples leitura, destacamos suas características de salmo sapiencial. No estilo, destacam-se duas comparações: viver em união é comparável ao óleo precioso sobre a cabeça de Arão e é também comparável ao orvalho de Hermom. O próprio orvalho bíblico é comparado com a benção divina e a vida eterna. No aspecto temático, percebemos que o homem justo e fraterno receberá a retribuição divina, na forma de benção e vida para sempre. Dissemos no início deste trabalho que nos salmos as palavras e as idéias têm ritmo e, neste aspecto, o Salmo 133 se revela um salmo clássico. As idéias nele contidas dão voltas, fechando o círculo como uma idéia que valsa durante a leitura. O óleo precioso desce sobre a barba e desce à orla das vestes de Arão. O orvalho desce sobre os montes de Sião e tudo se compara à união entre irmãos e recebe, como retribuição, a benção divina e a vida para sempre. Apesar de breve, o Salmo 133 é riquíssimo em referências bíblicas. Apenas Arão, o irmão do patriarca Moisés, tinha acesso ao Senhor perante a Arca da Aliança. “Mandarás fazer vestes litúrgicas para teu irmão Arão, em sinal de honra e distinção”, diz o Senhor em Êxodo, 28. Para prostrar-se diante do Senhor, Arão deveria estar ungido por um óleo precioso. “O Senhor falou a Moisés, dizendo:” “Pega aromas de primeira qualidade: cinco quilos de mirra virgem, dois quilos e meio de cinamomo aromático, dois quilos de meio de cana aromática, cinco quilos de cássia, segundo o peso do santuário, e nove quilos de azeite de olivas. Farás disto um óleo para a unção sagrada.” Êxodo, 30.
Grande era a alegria de Arão de untar-se do óleo precioso, elaborado segundo receita prescrita pelo próprio Senhor. Diz o analista bíblico que Arão se ungia sem parcimônia, deixando que o óleo precioso escorresse pelas barbas e chegasse às orlas de suas vestes, transparecendo a alegria de comparecer diante do Senhor.
Outra referência histórica é o orvalho de Hermom. Os hebreus censuravam Moisés, diante da fome e agruras da caminhada no deserto. “Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor do Egito, quando sentávamos junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura! Trouxestes-nos ao deserto para matar de fome toda esta gente”.Êxodo, 16. Eram dias críticos, em que os hebreus passavam por forte provação. Já haviam caminhado 75 dias, sem reservas suficientes para alimentar toda aquela massa de fiéis. Foi então que o Senhor falou a Moisés: “Eu ouvi as reclamações dos israelitas. Dizei-lhes: Ao anoitecer comereis carne, e amanhã cedo vos fartareis de pão. Assim sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus”.Como haveria meios de prover pão a toda aquela gente? A ação divina cuidaria disso. “Pela manhã formou-se uma camada de orvalho ao redor do acampamento. Quando o orvalho evaporou, na superfície do deserto apareceram pequenos flocos, como cristais de gelo sobre a terra. Ao verem, os israelitas perguntavam-se uns aos outros:” “Que é isto?”, pois não sabiam o que era.”Êxodo, 16”. O orvalho de Hermom, de que nos fala o Salmo 133 era o maná divino, que alimentou os israelitas durante toda a caminhada descrita no Livro do Êxodo. Era a retribuição de Deus àqueles que lhe devotavam fé. Assim se fecham as idéias do Salmo 133, rico em comparações sapienciais. Não temos o desafio da caminhada no deserto rumo à terra prometida, como o tiveram os israelitas. Enfrentamos o desafio diário da violência, da ira, da descrença. Para vencê-los, precisamos tão somente da união, da vida em fraternidade entre irmãos. Praticar a fraternidade é como receber o maná divino em todas as manhãs, é como ungir-se do óleo precioso. A lição do Salmo 133 assim se resume: praticar a fraternidade é estar preparado para comparecer diante do Senhor e a retribuição será a benção de Deus e a vida eterna.Ir.’.Geraldo Macarenko.revista universo maçônico.
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