quinta-feira, 17 de março de 2011

O Valor da Disciplina no Percurso Espiritual.


Desde as antigas escolas de mistérios, passando pelas religiões populares, até às escolas que divulgam diversas filosofias de pensamento, todas consideram a disciplina como um dos pilares principais e necessários ao desenvolvimento harmonioso do ser humano, em geral, e que não há evolução espiritual consciente e consistente sem ela.

Entendemos por disciplina uma acção continuada, executada por forma a atingir um determinado objectivo, em função de um contexto individual único e integrada num percurso espiritual consciente e previamente delineado.
Deste modo, a disciplina permite um trabalho dinâmico de acção construtiva sobre uma atitude que se pretende transformar ou adquirir. Saber o que se vai fazer, sobre aquilo que vai incidir e com que objectivo. Dito de uma outra forma, semeamos de forma consciente e continuada para colhermos algo que acrescente o nosso ser, o torne mais maduro e hábil no caminho do serviço.
Mas por que razão as diversas religiões e filosofias de pensamento aconselham a disciplina? Qual o seu valor?
A disciplina está directamente relacionada com o corpo vital, corpo do hábito e da memória, ainda que os seus efeitos não se restrinjam apenas a este corpo. Max Heindel afirmava que o desenvolvimento espiritual começa no corpo vital. Assim, a disciplina permite:

– transformar hábitos desadequados em atitudes benéficas a todo o nosso ser, potenciando, paulatinamente, a separação dos dois éteres superiores e formar de modo seguro o corpo-alma;
– reeducar o corpo vital, através do hábito, incutindo na memória pensamentos positivos e construtivos;
– aprender a semear de forma continuada e consciente para que possamos colher a curto e longo prazo os resultados do esforço;
– favorecer a concentração;
– obter melhores resultados na meditação porque dinamiza continuadamente o processo de visualização e desenvolve a nossa capacidade criativa.

Por vezes, desanimamos porque aquilo a que nos propomos é demasiado exigente ou desadequado ao nosso momento evolutivo.
Não devemos esquecer que ser disciplinado constitui um processo lento e faseado que deve ser construído depois de examinado o nosso percurso terreno bem como as nossas limitações e capacidades; é precisamente com base nestas últimas que planificamos pequenos objectivos, pois pequenos passos constróem grandes caminhadas.
Se, por um lado, é verdade que a disciplina potencia a transformação em determinadas áreas da vida, por outro, é igualmente verdade que nos salva do ardiloso e instável corpo emocional por constituir o farol seguro que nos lembra, como uma mãe sábia, o sentido maior das nossas atitudes e da nossa existência.
Tem, ainda, o poder salvífico de nos afastar das distracções nas quais somos tentados a mergulhar quando não temos coragem para olhar o nosso interior e efectuar mudanças necessárias.
A disciplina devolve-nos o tempo que o agastador quotidiano nos insiste em roubar. Mais do que isso: oferece-nos um tempo com sentido. Conduz-nos à nossa essência amorosa tecida de silêncio e de quietude. Fazer e refazer pelas mãos da disciplina o nosso ser não se esgota numa vida, mas em cada um podemos aprender a fiar e a tecer o longo manto do corpo-alma no tear contínuo do tempo.
Maria Coriel.

As Mouras Encantadas.


A tradição popular refere, amiúde, a existência de mouras, em menções de várias lendas. Os fatos são complexos e baralhados. Vamos dividi-los em dois grupos, para melhor os estudar. Assim, temos:

1 — Mouras encantadas. São seres, diz Leite de Vasconcelos, dotados de força sobrenatural, que vivem em certos locais, como se estivessem adormecidos, enquanto certas circunstancias não lhes quebrar o encanto. Estes locais são, normalmente, poços, fontes, cisternas, montanhas e ruínas. Por vezes têm um aspecto sedutor e apresentam-se aos viajantes que passam pelos seus domínios, convidando-os a passarem no dia seguinte, com alusões a objetos preciosos que guardam e propostas diversas. A crença popular acredita na possibilidade de se transformarem em serpentes. Martinho de Dume, o evangelizador do Minho (Séc. VI), designava as mouras da época (lamias) como mulheres-demónios expulsos do céu!

Diz ainda a opinião popular que estas mouras se encontram nesses locais a guardar tesouros deixados pelos mouros, até que alguém os possa descobrir.

2 — Mouras fiandeiras. Estão associadas às construções dos antigos monumentos porque, acredita-se, enquanto acarretavam as pedras à cabeça iam a fiar com uma roca à cinta. E até se dizia em tempos, lá para os lados da Citânia de Briteiros, que se via de vez em quando uma moura a fiar enquanto pastoreava o gado.

A santificação e o culto das águas tinha para os antigos lusitanos uma grande importância. Não diminuiu na época lusitano-romana e em muitos casos mantém-se ainda.

Tudo indica, no entanto, que as histórias das mouras — encantadas ou fiandeiras — tenham origem muito anterior à presença dos mouros no país. Sabe-se que, no primeiro século da nossa era, tinham “sido vistos” à beira mar, perto de Lisboa, um tritão, com o seu búzio, e diversas nereides.

O tritão (sereia-macho) é um símbolo mitológico-cabalístico com origem na lenda de Perséfone e que significa que “alma sobrevive ao corpo” . Foi complexa a evolução da sua imagem. Entre os Gregos tem forma alada. Depois tomou a forma de mulher, com as pernas em forma de peixe.

É assim que aparece nas pinturas e esculturas nas igrejas. Com o tronco masculino e cara barbada surge nos documentos náuticos dos séc. XV e XVI e em alguns monumentos, como os de Conínbriga.

Não admira que em Lisboa se encontrem facilmente restos dessas crenças, sendo uma cidade tão antiga. Ainda hoje há um sítio, nesta cidade, chamado Cova da Moura.

De fato, na região existem muitas covas, lapas e grutas, que tiveram serventias diversas. Da cova da Moura não resta o menor vestígio, estando o sítio ocupado pelo casario.

A relação das mouras com o elemento líquido é evidente. E a água tem até uma grande importância em qualquer cerimónia religiosa. É um importante símbolo, que se relaciona com a vida, com as origens, com o renascimento e a regeneração.

Na crença popular há também, ainda hoje a convicção da existência de “águas mortas” (a que está fora de casa, à meia-noite) e de “águas vivas” (as que brotam da terra e têm prestígio sagrado.

As águas mortas podem ser vivificadas com uma fórmula que todas as crianças conheciam . Todavia, na manhã de S. João, todas as águas são consideradas sagradas, porque são fecundadas, nesse dia, pelo Sol. E daí a existência dos banhos santos no dia de S. João, como é hábito, por exemplo, na praia de S. Bartolomeu do Mar (Esposende) .

Ficámos a saber que as mouras são seres sobrenaturais, normalmente associadas às águas, e que a sua existência é assinalada muito antes das invasões dos árabes. E são, pelo menos em parte, as herdeiras das tradições culturais greco-latinas.

Na Idade Média, muitas pessoas ainda tinha restos de clarividência negativa e viam seres chamados elementais, cuja função estava associada às forças que designamos por leis da Natureza.

As ondinas e as ninfas eram os espíritos sub-humanos que habitavam nos rios e nas correntes de água. Além disso, as mouras também estão associadas às Parcas , que eram divindades que presidiam ao nascimento e depois ao casamento e à morte. Eram as “fiandeiras da vida e da morte”. Uma segura o fuso e puxa o fio da vida (o cordão prateado); a segunda enrola-o, registando o “filme” da vida e a base da existência futura e determina o momento da morte; e a terceira corta inflexivelmente esse fio. Na arte, as três parcas foram associadas às “três graças”.

Compreenderemos melhor, agora, este assunto, se nos lembrarmos que a palavra moura não deve ser considerada o feminino de mouro, mas um sinónimo de moira, palavra grega que significa “destino”, como se pode ver em Horácio .

O conceito popular de Moira atribui à fatalidade qualquer série de coincidências à primeira vista inexplicáveis e, sobretudo, as mais infelizes. Os mais conhecedores relacionam a Moira com a justiça e a providência, quer dizer, com a cadeia de causas ou série de causas, que determinam um efeito (lei de causa e efeito).

E falam, por isso, em moira maléfica e moira benéfica relacionando-as com divindades ctónicas, que são seres sobrenaturais que habitam as cavidades da terra.
Bibliografia.

Brandão, Junito — Dicionário Mítico-Etimológico, Petrópolis, 1993; Espírito-Santo, Moisés — A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, s/d; Freire, António — O Conceito de Moira na Tragédia Grega, 1969; Heindel, Max — Os Espíritos e as Forças da Natureza, Lisboa, 1983; Vasconcelos, J. Leite de — Religiões da Lusitânia, vol III, Lisboa 1913; Opúsculos, vol. V, parte I, Lisboa 1938.