A tribo é uma forma de organização da sociedade primitiva. A expressão "tribos urbanas" refere-se a grupos de juvenis, que se identificam por motivos diversos, e que assumem características que os tornam fáceis de identificar: o modo de vestir, os adornos, os gostos musicais, etc. Andam em grupo, assumem por vezes comportamentos de risco e conduta violenta, mesmo associada ao consumo de drogas. O seu comportamento reproduz muitos traços comparáveis com os da infância da humanidade, como seja a incapacidade para o domínio dos impulsos instintivos – agressivos e libidinais – e certas práticas rituais. Vamos ver algumas das últimas.
Rito – Cerimonial.
Um rito, ou um ritual, é um conjunto de gestos e actos, individuais ou colectivos, realizados em tempo e lugar próprio. Incluem certas fórmulas que possuem uma eficácia de ordem simbólica ou real. Todos os ritos têm uma componente física e verbal.
Os baptizados e os casamentos, por exemplo, são momentos ritualistas muito conhecidos. Segundo as nossas tradições, devem realizar-se em determinados momentos para assinalar acontecimentos de relevo e de acrescida responsabilidade. O baptismo é o protótipo da iniciação cristã. Parece ter origem no baptismo dos prosélitos judeus e estava dividido em três partes. Na primeira, fazia-se interrogatório preliminar, em que se apelava para as dificuldades que ia sofrer. Se, depois disso, ainda queria entrar no judaísmo, passava pelo rito da circuncisão, mesmo que já tivesse sido circuncidado noutra religião, e depois pelo do baptismo.
O rito do casamento desenvolve-se de modo verdadeiramente interessante. Convém recordar alguns termos que ampliarão o seu entendimento. Tudo quanto se diga sobre a busca nupcial na humanidade primitiva ou, melhor, como foi a procura da mulher, fora do clã ou da tribo, não passa de conjectura mais ou menos fantasiosa. Tirados os casos, aliás frequentes, do rapto e de "presas de guerra", as formas mais pacíficas de obtenção de mulher podiam ser várias: a compra ou troca (coemptio), e a convenção festiva celebrada num repasto (conferreatio), que é a origem das bodas actuais. E não falaremos do usus dos Romanos, que nos nossos tempos medievais era designado por "pública fama", por não ser forma de conseguir mulher, mas a de consagrar uma situação já criada.
A "família" constitui-se a partir do casamento (de casa). A casa forma-se com o matrimónio, de matrimonium + patrimonium: a mulher-mãe mais os bens do marido. O casamento celebra-se por meio das núpcias, que é a cerimónia ritual do matrimónio. O noivo e a noiva são os "nubentes", aqueles que celebram as núpcias e, segundo o uso, o noivado começa a contar-se a partir do acto do pedido de casamento. Em linguagem mais correcta deverão designar-se, antes, por "esposos" – sponsus, sponsa: os prometidos em casamento. O pedido de casamento é o "desposório", a sponsalia dos Romanos. Muitas vezes estipulava-se neles o dote, ou "arras", para garantia de sobrevivência da mulher em caso de viuvez.
Consumado o casamento, os noivos transformam-se em marido e mulher, o maritus e a marita ou mulier (mulher maridada) em latim, que é o oposto a virgo, a virgem, e preparam-se para ascender ao grau superior de paterfamilias e de mater: de pai e de mãe. Considera-se hoje o casamento um contrato e ao mesmo tempo um sacramento, mas na forma externa, os seus ritos variavam conforme os locais e neles descobrem-se ressaibos simbólicos do rapto primitivo ou da transacção entre o pretendente e o chefe da família.
O aparelho mágico e religioso que tem envolvido o acto nupcial, a concepção e o nascimento, é o símbolo de que os homens se servem para atenuar a "violência" biológica da consumação que faz da donzela uma "mulher maridada", como diziam os antigos na sua extraordinária pureza vocabular.
Quer do ponto de vista da sociologia da família, como da antropologia do amor, o rito do casamento é um meio para desenvolver a reflexão sobre a espiritualidade do amor e da ética matrimonial.
Dito isto, voltemos ao nosso tema para analisar a origem dos ritos agora associados ao nosso calendário folclórico e religioso. Ao estudar os conteúdos latentes em todos estes festejos, pode ver-se claramente o fundo ritualístico anterior às medidas proibitivas dos primeiros tempos do cristianismo.
Estes ritos serviam para assinalar datas importantes associadas aos ciclos cósmicos e agrários, e contribuíam para a compreensão do mundo e das suas relações com as divindades protectoras da fertilidade, da Terra e dos homens.
Tinham nos solstícios do Inverno (Dezembro) e do Verão (Junho) e nos equinócios da Primavera (Março) e do Outono (Setembro), o seu ponto alto, quando se representava, de modo teatral, a vida quotidiana articulada com o mito, o rito e a exaltação colectiva.
Os ritos actuais mais conhecidos, que são restos de práticas das antigas hierofanias em homenagem ao Sol, que o cristianismo não conseguiu abolir, e que, por isso; os integraram na hagiografia, celebram-se no Natal (solstício de Inverno), na Páscoa (equinócios da Primavera) e no "mês dos santos", por ocasião do solstício de Verão: Santo António, S. João e S. Pedro. Esquecida a sua matriz original, permanece ainda a sua função de renovar a ordem social e refazer os laços sociais, e porque não as bases para o desenvolvimento de uma promissora indústria cultural. Vamos agora falar de um pouco dos ritos da puberdade, ou da adolescência, para rectificação de alguns conceitos e nova iluminação de alguns outros aspectos.
Ritos da Adolescência.
Ainda hoje a cultura juvenil assinala a entrada na idade adulta. A Festa dos Rapazes, que se realiza todos ao anos na região de Bragança, entre 24 de Dezembro e 6 de Janeiro, é um exemplo conhecido do cerimonial de admissão do jovem na vida comunitária dos adultos. Participam na festa rapazes com idade próxima dos 14 anos. É a idade da puberdade, quando desperta o corpo de desejos ou emocional, capacitando o jovem para a propagação e a assunção das suas responsabilidades na vida social. Diga-se de passagem que, no antigo direito, os esponsais celebravam-se a partir dos 7 anos, sendo possível reclamar-se atingida a puberdade. Sabemos bem como é importante a harmonia deste primeiro período septenário no desenvolvimento harmonioso da criança, em que o veículo vital intensifica a sua actividade para impulsionar o crescimento do corpo físico.
Na fase final da festa, depois da "ronda das boas-festas", que percorre a aldeia para recolha de presentes, chega o momento alto com a realização do baile, que tem implícito o consentimento social pela aproximação do sexo oposto.
O instituto humano do casamento é também um instituto iminentemente social. Por si mesmo é um paradigma da sociedade que existe e se desenvolve no âmbito de uma sociedade maior. A família faz-se gens; a gens, tribo; a tribo, Urbs – a Cidade, o Estado. A natureza social da família vem-lhe da sua essência "conjugal"; a política, das suas relações com outras famílias vizinhas. As consequências típicas e imediatas de uma sociedade de pai e mãe reflectem-se nos filhos.
Os pais, antes de entregarem os filhos já criados à sociedade – no baile – que é o rito final da Festa dos Rapazes, preparam-nos, educando-os e instruindo-os. O baile é o prenúncio do encontro conjugal, que é o acto primário relevante da sociabilidade, provocado pela força atractiva dos esposos que se unem para fazerem da sua oposição uma unidade. Na Antiguidade Clássica, os ritos de núpcias celebravam-se em três fases distintas. A primeira realizava-se junto do fogo sagrado do lar, para desligar a filha da religião doméstica dos antepassados. A noiva era coberta com um véu e usava uma coroa de flores. Na segunda fase, havia um cortejo acompanhado de um facho, com o fogo sagrado. Na terceira, às portas da casa do futuro marido, celebrava-se um ritual mímico, em que o fogo volta a desempenhar uma função importante. Viriato celebrou assim o seu casamento, à maneira grega, como nos contam os historiadores. Mas outros povos tinham diferentes usos, em que aflora o primitivo animismo para impetrar ajuda das forças ocultas. As tatuagens, excisões, incisões e mutilações eram – e ainda são – supostos meios para atingir esses fins.
Tatuagens e Mutilações.
A Festa dos Rapazes, como rito típico da adolescência que ficou assimilada à festa do santo padroeiro, S. Estêvão, realiza-se num ambiente de grande exuberância e exaltação festiva, liberta já, ao que parece, de práticas sádicas da horda primitiva. A relação entre a festa, o jogo, o sentimento religioso, o rito e os mistérios sagrados ficou demonstrada por Huizinga. Não é possível, na maior parte dos casos, traçar a fronteira ente o ambiente de divertimento e a emoção pelo mistério central. A festa constitui-se, assim, um componente do rito, um acto que se destina a facilitar a aceitação do seu conteúdo doloroso.
As sociedades civilizadas conservam costumes religiosos e normas éticas baseadas em prescrições associadas aos antigos mitos e respectivos rituais, ligados aos acontecimentos fundamentais da vida.
Na história da humanidade antiga, e em especial nas civilizações da Ásia Menor e do Mediterrâneo, encontram-se práticas com fundamentos religiosos ou sancionadas pelo costume, em que os pais se unem, como cúmplices, para impor ao filho um "sinal particular" característico, ou até para o sacrificar.
Em tais sociedades, não bastava alcançar a idade viril para se fazer parte da sociedade dos adultos. O direito a esta nova dignidade não se conferia sem participar em rituais adequados. Procedia-se então à cerimónia que promovia a esse estádio social. No contexto dos costumes religiosos destaca-se, pela sua universalidade, a prática das mutilações e das tatuagens.
A mutilação mais visível é a perfuração (piercing) das orelhas para colocação de brincos; mas também se perfuram os lábios, língua, sobrancelhas, septo nasal, etc. Das mutilações genitais1, a mais comum é a circuncisão. A prescrição religiosa de circuncidar os filhos varões alcançou uma importância tão grande que o Papa Gregório XIII inscreveu a celebração da "festa da circuncisão de Nosso Senhor Jesus Cristo" no dia 1 de Janeiro, que é o primeiro do seu calendário, adoptado universalmente.
Nos ritos mutilatórios femininos, que são quase tão difundidos quanto os rituais masculinos, os costumes tribais também submetem as jovens a excisões e incisões. A infibulação, tal como é praticada em África, é a mais cruel das mutilações genitais femininas. É uma tradição que tem o efeito imediato de despertar a repugnância e a rejeição de todas as pessoas medianamente desenvolvidas.
Os efeitos profiláticos destes ritos são nulos, segundo a maior parte dos autores, e revelam completa indiferença pelos danos psíquicos decorrentes. Todas estas mutilações são mais frequentes nas culturas orientais e africanas do que nas ocidentais. Em Portugal deixou de praticar-se a circuncisão por ser um corpus delicit muito grave aos olhos da Inquisição. Mas este preceito, que era necessário para entrar na aliança de Abraão, já não é observado, mesmo sem as antigas restrições. Nem mesmo em grande parte das comunidades israelitas da América, como se depreende da correspondência trocada entre o eminente cientista judeu Moisés Tractemberg e o antigo Primeiro-Ministro Israelita David ben Gurion.
Na tatuagem, abrem-se no corpo do jovem diversos golpes: na cabeça, braços ou barriga. O corpo do famoso Homem do Gelo, que foi encontrado quase intacto por alpinistas, nos Alpes italianos, em 1991, conservado pelas baixas temperaturas, é a múmia mais antiga e bem conservada descoberta até hoje: tem 5000 anos. Apresenta nitidamente diversas tatuagens nas costas, ao longo da coluna vertebral. Também se encontraram múmias do Antigo Egipto tatuadas.
No continente africano a tatuagem tem uma variante: como a pele negra dos indígenas não permite o uso de pigmentos para o desenho das figuras, recorre-se ao processo da escarificação epidérmica, que consiste, na maior parte dos casos, em friccionar as incisões com cinza, para deter o sangue; e depois com ervas amargas de certas espécies vegetais, para que a ferida deixe fortes cicatrizes ao sarar. Por vezes, os dentes incisivos médios são limados de modo que formem uma abertura triangular. Estes ritos consumavam a entrada do jovem na sociedade dos adultos. Acredita-se também que eles conferiam aptidões especiais, e até a sorte.
A experiência da dor parece ter exercido uma função importante na formação da identidade cultural dos povos. A serenidade com que os jovens suportavam o seu martírio mostra bem como o limiar da dor é variável para cada cultura, como assinala Max Heindel.
Conclusão.
A crescente globalização da sociedade deu origem a um movimento contrário de reacção, de contracultura, que é particularmente visível em diversos grupos juvenis, incluindo os que denominamos de "tribos urbanas". Este movimento de contracultura é particularmente evidente a partir dos anos 50, em pleno pós-guerra, e tem as suas raízes históricas na cidade de S. Francisco, nos Estados Unidos2. Quase todos estes grupos adoptam comportamentos típicos orientado para a exacerbação, experimentação ou superação de normas ou convenções, muitas vezes associados a comportamentos de risco.
Esta maneira de agir deve-se, por via de regra, à intensificação emocional provocada pela suspensão das inibições socialmente instauradas. O consumo de drogas, provenientes de um vasto arsenal de substâncias farmo-químicas, e o recurso a expressões musicais fortemente rítmicas, contribuem para levar o corpo aos limites da resistência física e sensorial. A efervescência colectiva assume aspectos semelhantes aos dos ritos orgiásticos das possessões tribais. A linguagem empobrece porque se privilegia a expressão física. Tudo se resume à procura da sensação hedonista do "sentir-se bem".
A negação da dor e o consequente abandono de práticas mutilatórias marcam, na história da humanidade antiga, o início da desagregação interna da sua cultura, incluindo a componente mágico-religiosa, por influência o impulso civilizador do progresso. Na Bíblia, a proibição do Dt 14, 1-2 e do Lev 19, 27-28, surge na tentativa de pôr termo ao vínculo com os deuses antigos das nações tribais. O recrudescimento de práticas mutilatórias e da tatuagem, associadas a ritos antigos, ocorre hoje em algumas culturas juvenis. A solidariedade grupal exigida aos seus elementos, ociosos, sem origem nem destino, sem terem sequer a velha espiritualidade da sociedade que rejeitam, torna instáveis estas colectividades em que a nota característica é a transitoriedade e o imediatismo das suas preocupações fundamentais e a inexistência de projectos racionais para o futuro. No seu universo de referências associam-se vários traços que os ligam ao passado, mas não há esforço algum para esclarecer os principais dinamismos que estão na sua origem. Aceitam-nos como simples compulsões inconscientes associadas a pontos de vista estéticos capazes de modificar a aparência física – ou por razões emblemáticas distintivas do grupo
Bibliografia
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