contos sol e lua

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domingo, 29 de abril de 2012

Um sonho apenas.


Em geral não é difícil fazer um espírito recém-desencarnado desistir de passar o tempo a observar o cotidiano dos vivos. Basta lembrá-lo de quantas outras coisas mais interessantes e emocionantes ele poderia estar fazendo. Mas nem sempre é tão simples assim.
O dia já havia amanhecido e seria esplendoroso, nenhuma nuvem manchava o céu. O casal dormia profundamente na grande cama, os corpos astrais a flutuar sobre os corpos físicos como balões, ligados apenas pelo fino cordão. Uma diferença era marcante: o corpo astral da mulher estava sereno, tão quieto quanto seu corpo físico. Já o corpo astral do homem parecia em constante ebulição, refletia o seu desconforto. Sentado numa poltrona em frente à cama estava o motivo: um espírito raivoso, que alguns vivos chamam de encosto. Ele parecia em transe, mas olhou para mim quando me aproximei.
- Você de novo? Não desistiu? Espíritos bonzinhos não têm mais o que fazer? - ironizou.
Podemos também chamar estes espíritos de perdidos, um bom nome, mas não era esta a impressão que ele passava. Era determinado, seguro, certo de seus objetivos e também de como levá-los a curso. Queria vingança. No dia anterior eu já havia tentado mostrar que ele estava perdendo tempo, mas a raiva o deixava surdo aos meus argumentos. Por isto eu voltara com outro plano.
- Não, não desisti. E se você pode ficar por aqui, por que eu também não posso?
- Porque você não tem motivo, eu tenho. Morei na casa de campo desde criança e ele nunca me ajudou, só queria que eu cuidasse das plantas. Impediu até que eu estudasse, me condenando a ser jardineiro para sempre.
Como se eu fosse um escravo, uma outra propriedade! Em vida eu nada podia fazer, precisávamos do emprego, mas agora posso atingi-lo. E não tente me desmentir, basta olhar para ele. Depois que cheguei ficou nervoso, irritadiço, desanimado. Parece até que está envelhecendo mais rápido.
Era este o problema. Enquanto o espírito sentisse que ainda podia influenciar o mundo dos vivos, não conseguiria pensar em mais nada. Mas eu sabia como resolver a questão.
- Se o que você quer é atingi-lo, por que não fala tudo de uma vez?
- Como assim, falar? Eu estou morto! - replicou, como se eu fora um asno.
- Fale quando ele estiver sonhando. Ele vai ouvir.
- Você na certa pensa que sou algum tipo de idiota, não é? Se fosse tão fácil, todos os mortos falariam com seus parentes nos sonhos...
- Não estou falando que é fácil. Estou falando que sei como fazer para que ele te ouça.
- E como você aprendeu? - desconfiou, mas sem conseguir esconder o interesse.
Eu o havia fisgado.
- Estou no astral há séculos, tive tempo para aprender alguma coisa.
Ele ainda hesitou um momento, mas depois acenou com a cabeça, pedindo para que eu fosse em frente. Solene, flutuei até o corpo astral do homem e com alguns leves e precisos movimentos consegui atrair sua atenção. Depois não foi difícil induzi-lo a me acompanhar. O espírito raivoso parecia admirado com minha destreza, o plano estava funcionando. Sem perda de tempo, comecei a falar:
- Você está sonhando, mas pode nos ouvir. Preste atenção, pois agora você terá um encontro importante. Vai descobrir quem anda te amedrontando e atrapalhando a vida.
Então fiz um sinal para que o espírito se aproximasse. Ansioso, ele colocou-se frente a frente com o corpo astral do vivo, que o reconheceu e reagiu de pronto. Sorrindo com desdém, desviou o olhar e passou a flutuar a esmo pelo quarto, como um balão de criança, como uma pluma solta ao vento. O espírito não se conteve, explodindo de raiva:
- Chame-o de volta! Ainda nem comecei a falar!
- Não adianta, você acaba de perder a influência sobre ele. Não há dúvida que ele recebia uma vibração negativa, mas ela tornou-se inofensiva agora que ele sabe de quem partia. Afinal, você está morto e ele não acredita em vida após a morte. Mau-olhado não pega em quem não acredita, nunca ouviu falar? Agora ouça o meu conselho, siga o seu caminho.
- Vou continuar aqui e ninguém pode me impedir! - insistiu, irado.
- Você prefere mesmo assistir às vidas dos outros ao invés de se interessar pelas suas? Não tem nem curiosidade em saber quem foi e o que fez nas encarnações anteriores?
Antes que o espírito respondesse, um despertador disparou. No mesmo instante os corpos astrais do casal voltaram para seus corpos físicos, sugados violentamente. Logo o homem sentou-se bocejando e desligou a campainha. Depois esfregou os olhos e percebeu que sua mulher também despertara. Então começou a falar.
- Você não imagina o sonho maluco que tive esta noite. Estava preso numa espécie de areia movediça úmida, escura e espessa, mas, conformado, nem tentava fugir. Foi quando surgiu alguém que conseguiu me tirar de lá facilmente, avisando que faria uma grande revelação. Mas não pôde fazê-la. Fomos interrompidos, sabe por quem? Pelo filho da caseira de Teresópolis, aquele que morreu atropelado no mês passado. Pode? Como era mesmo o nome dele? O engraçado é que logo depois passei a me sentir melhor, como se uma âncora tivesse sido arrancada dos meus pés. Que loucura, né? Sonhos são mesmo uma grande bobagem, nada faz sentido! O bom é que acordei sem dor na cabeça e nas costas. Acho até que vou ao clube jogar tênis.
O espírito ficou a pensar, amargurado, até que virou-se para mim.
- Vou embora - afirmou, vencido.
- Sabe para onde ir? - perguntei.
- Não, mas encontro o caminho sozinho.
- Boa sorte, então.
Sem sequer me responder, o espírito atravessou a parede e partiu em busca de passado e futuro. Deixei-me ficar ali a meditar sobre como é forte e instável o impulso de vingança, até que a voz da mulher me interrompeu.
- Falando em Teresópolis, precisamos despedir a Dona Rita. Depois que o filho morreu, ela não trabalha como antes, vive a choramingar pela casa. Vou ligar para umas amigas e ver se elas conhecem alguém mais jovem, sem filhos, de confiança e que aceite morar na serra.
- Cuidado para não se cansar com tanto afazeres - ironizou ele, alfinetando a mulher.
Ainda bem que o espírito não estava mais ali, senão eu teria trabalho dobrado para convencê-lo a partir! Mas o casal não precisava de influência externa para viver sob tensão, o clima era de guerra. Colhiam o que plantaram.
Antes que ela reagisse, bateram na porta. Era a empregada, carregando uma bandeja.
- Elza, não precisa mais trazer os remédios junto com o café. Seu patrão acordou melhor.
- Foi porque pedi por ele no centro, patroa. Vivo no meio desde pequena, a senhora sabe, sinto as coisas. Tinha um espírito ruim encostado no patrão, mas com certeza enviaram um bom para buscá-lo.
- Ah tá, Elza, você e seus espíritos! Ele melhorou e pronto, foi só isso! - desdenhou a patroa, caminhando até o espelho.
- Meu Deus, como estou envelhecida! Plásticas, ginástica e ainda uma fortuna com médicos, cremes e massagens! Não sei mais o que fazer para parecer jovem!
Em vez de aproveitar a dádiva de estar vivendo numa escola rica como a Terra, ela preferia apenas sonhar com o dia em que pareceria outra vez jovem. E, mesmo que este dia chegasse, ela em nada melhoraria. Continuaria apenas se preocupando em não envelhecer, em burlar a natureza.
Ora, para ficar mais jovem basta nascer de novo, pensei, amargurado, saindo pela janela.
Lá fora o dia continuava magnífico e eu tinha mais o que fazer.
Carlos Luz.

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