quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
O Banquete, de Platão.
Em O banquete, Platão define o amor como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógino que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana. Esse ser, que só existe no mundo das idéias platônico, confere à sua natureza e forma uma espécie peculiar de beleza: a beleza da completude, do todo indissociável, e não uma beleza que simplesmente imita a natureza. Assim, temos em Platão, uma concepção de belo que se afasta da interferência e da participação do juízo humano, ou seja, o homem tem uma atuação passiva no que concerne ao conceito de belo: não está sob sua responsabilidade o julgamento do que é ou não é belo. A dialética de Platão aponta para duas direções: o mundo das idéias, num plano superior, do conhecimento, que é, ao mesmo tempo, absoluto e estático; a outra direção segue para o mundo das coisas, dos humanos. Este, de aparência sensível, é constituído pela imitação de um ideal concebido no mundo das idéias: portanto, num processo de cópia. Gilles Deleuze aponta para uma terceira possibilidade que quebra a dicotomia platônica: a cópia fiel e o simulacro, não mais tido como degenerescência da semelhança ao mundo das idéias, um mero fantasma. Para os gregos, o belo artístico situava-se no embate entre as boas cópias e o simulacro.
O Banquete não pode ser considerado um diálogo; tende muito mais para um duelo no qual os participantes pretendem fazer, cada qual, o melhor discurso sobre a amizade. O início da obra lembra-nos outras de Platão: alguns estão em caminho para a cidade quando são interrompidos por outros e se colocam a discutir determinado assunto. Desta mesma forma acontece em A República (Sócrates e Glauco estão descendo do Pireu e terminam na casa de Céfalo) e no Fedro (Fedro, depois de ouvir Lísias, encontra Sócrates no caminho para a cidade e se colocam a debater o discurso retórico de Lísias). No Banquete, Apolodoro e seu Companheiro (a obra não revela o nome dele) estão indo de casa, em Falero, para a cidade quando são interrompidos por Glauco:
Recentemente, quando eu subia de casa, em Falero, para a cidade, um conhecido que me tinha visto por de trás, gritou de longe, em tom de brincadeira: Ó cidadão de Falero, de nome Apolodoro! Por que não esperas? Então, me detive para esperá-lo. E ele: Apolodoro, me falou, andava à tua procura, porque desejo obter informações precisas a respeito da conversa de Agatão com Sócrates, Alcibíades e os demais convivas do banquete dado por ele, em que proferiram vários discursos sobre o amor. Aristodemo havia estado presente no banquete no qual se deu a discussão a respeito da amizade. Esse contou o que ali se passara para Apolodoro e esse, por último, se empenha em relatar o acontecido na presença do seu Companheiro e de Glauco.
Assim como em A República, O Banquete tem lugar certo e público identificável: ocorreu na casa de Agatão, discípulo de Sócrates. Lá discursaram sobre o amor, ou sobre a amizade (philia), esses dois, além de Fedro, Pausânias, Erixímaco (o médico) e Aristófanes (o poeta).
O que realmente se passou na casa de Agatão começa a ser relatado por Apolodoro em 174a. Sócrates chega por último, quando todos já estavam acomodados e o banquete já havia se iniciado, estando pelo meio (cf. 175c). Frente ao banquete, Pausânias lembra que deveriam beber com moderação: faz referência ao dia anterior, no qual havia bebido exageradamente e ficado abalado fisicamente.
Os discursos sobre o amor iniciam com Fedro: "iniciou o seu discurso [Fedro] declarando que Eros era uma divindade poderosa e admirável, tanto entre os homens como entre os deuses, por várias razões, mas, antes de tudo, pelo nascimento." (178a) Fedro é o primeiro, e por isso pai do discurso, a falar sobre o deus Eros: ele condena o ofício dos poetas que têm por missão cantar hinos aos deuses mas se esquecem de Eros. Fedro, no seu discurso, faz a justificação moral de Eros, mas não investiga a fundo sua essência e suas formas. De qualquer forma, é devido à fala desse discípulo de Sócrates que toda a discussão se inicia. Com o intuito de elevar Eros, Fedro encerra seu discurso dizendo que esse é o deus mais antigo, mais respeitável e o mais "autorizado" (cf. 180b) a levar o homem à posse das virtudes e da felicidade, nesta vida e depois da morte!
Sucede Fedro no discurso em defesa de Eros outro discípulo, agora Pausânias: censura a falta de precisão do discurso anterior e tenta uma definição concreta. Para ele, existem dois tipos de Eros para os homens, um vulgar e repudiável, outro sendo uma força educadora.
O Eros usual e corrente, o instinto e irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende à mera satisfação dos apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem divina e o impulsiona o zelo de servir ao verdadeiro bem e à perfeição do amado. Este segundo Eros pretende ser uma força educadora, não só no sentido negativo de desviar os amantes das ações vis, o que o discurso de Fedro realça, mas também em toda a sua essência, como força que serve ao amigo e o ajuda a expandir a sua personalidade. (JAEGER, 2001, p. 727) O amor para Pausânias é sinônimo de liberdade para o homem. O amante faz coisas para o amado que escravo algum aceitaria fazer, tal como se jogar no chão ou se deitar na porta da moradia do amado. O amor é louvável, que denota a liberdade do indivíduo em fazer ou não determinadas coisas e, segundo Pausânias, é ratificado pelas leis, como ele mesmo nos diz:
O amante faz tudo isso [serviços para o amado] com certa graça, o que lhe é permitido pela liberdade de nossos costumes, sem incidir na menor censura de ninguém, como se se tratasse de um ato louvabilíssimo. E o mais de admirar é que, no dizer do povo, somente o amante obtém perdão dos deuses, em caso de perjuro. Não há juras de amor, dizem. Desse modo, tanto os deuses como os homens concedem plena liberdade a quem ama, o que nossas leis confirmam. As atitudes de quem ama não o faz parecer ridículo e, se em agressão aos deuses, é logo perdoado pela sua condição de amante. O amor aproxima o sujeito das virtudes.
Assim finda Pausânias e, de acordo com a disposição dos homens no banquete e da forma organizada que ia seguindo a discussão, seria a vez de Aristófanes. Mas esse se encontrava em soluços e passou a palavra para o próximo, Erixímaco. Em seguida, a vez de discursar voltaria para Aristófanes.
O médico Erixímaco propõe ao amigo em soluço três "remédios" para o problema:
1. Que prenda a respiração por um momento;
2. Se não resolver, que gargareje um pouco de água;
3. Se mesmo assim não resolver, que cheire algo que irrite o nariz. Assim, repetindo essa etapa por duas vezes, Erixímaco garante que o soluço, por mais forte que seja, passará.
É interessante observar a aplicação da medicina na época de Sócrates e de se perceber o interesse de um médico pela filosofia e pelas idéias de Sócrates.
O discurso de Erixímaco é aquele que transpassa o homem e atinge a natureza. Com a visão de um médico, visão naturalista, Eros aparece aqui como um deus poderoso, princípio e devir de todo o físico, "como potência criadora daquele amor primogênito que tudo anima e penetra, com o seu ritmo periódico de pleno e de vazio." (JAEGER, 2001, p. 730)
Erixímaco vê a existência de um Eros bom e um ruim. É o Eros bom que promove o bem-estar e a harmonia, estando em todas as esferas do cosmo e das artes humanas. Ele compara a medicina e a música: a primeira deve fazer existir a harmonia entre as forças físicas antagônicas e segunda deve combinar tons altos e baixos para formar uma sinfonia. A idéia de harmonia, tão presente em A República, aparece aqui novamente, até mesmo quando o médico grego diz que o homem deve sim consentir o prazer, mas não deve se deixar corromper por esse.
Findada a fala do médico Erixímaco, Aristófanes já tem por cessado o seu soluço e começa a expor o que tem a falar sobre o amor.
O discurso do poeta Aristófanes é menos extenso que o do Erixímaco, mas maior que o de Fedro. Percebe-se que a discussão vai avançando e se aproximando de definições mais claras para o que seria o amor, ou a amizade, ou Eros. Para Aristófanes, Eros é um anseio, uma busca metafísica do homem por uma totalidade do Ser, inacessível sempre à natureza do indivíduo. Uma das coisas que revela isso é a saudade dos amantes que desejam não se separar em tempo algum: não se trata somente de algo corporal, mas de algo que une as suas almas ou, dizendo de outra forma, complemento que uma alma busca na outra. Diz-nos Aristófanes:
Quando acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo, ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que denominamos amor. Não se deve esquecer que Aristófanes é poeta e apresenta uma visão mais romantizada da definição de Eros, de amor e amizade. Ele quer deixar evidente que não se trata de apenas uma conexão corporal, muito mais de essência e de complementaridade.
Não é, evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma coisa diferente o que a alma de ambos quer, uma coisa que ela não pode exprimir e que só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma da sua vida.
Aristófanes termina seu discurso sobre o amor de forma belíssima, profetizando que o homem só terá uma vida feliz se tomado por Eros:
Falo em tese, tanto do homem como da mulher, para afirmar que nossa espécie só poderá ser feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza. Terminado Aristófanes, o leitor tem pela frente dois discursos: o de Agatão e Sócrates. Esses dois começam a discutir para saber quem vai falar primeiro. Sócrates não perde a oportunidade para lançar sua ironia: diz ter uma posição temerosa, falar sobre o amor depois do belo discurso que provavelmente Agatão proferirá. Fedro reorganiza o banquete (a ordem dos discursos) e coloca Agatão para discursar.
Diz ele ser necessário tratar primeiro da natureza do deus e para depois tratar de seus benefícios; Eros é o deus mais bem-aventurado, o mais belo e melhor. O discurso de Agatão é o menos psicológico, o menos relacionado com a alma. Ele limita-se a descrever Eros e suas características. Jaeger muito bem resume o discurso de Agatão sobre Eros:
Conforme Ágaton o descreve, Eros é o mais feliz, o mais formoso e o melhor de todos os deuses. É jovem, fino e delicado, e só mora em locais floridos e perfumados. Sobre ele nunca põe as mãos a coação, pois o seu reino é o da vontade pura e livre. Possui todas as virtudes: a justiça, a prudência, a bravura e a sabedoria. É um grande poeta e ensina os outros a sê-lo. Desde que Eros pisou o Olimpo, o trono dos deuses passou de terrífico a belo. Foi ele quem ensinou à maioria dos imortais as suas artes. E o entusiasta adorador do deus de Eros, hino capaz de competir com qualquer hino em verso, tanto pelo equilíbrio harmônico da composição como pela sonoridade musical.
O grande momento do Banquete, e talvez o mais esperado, é quando Sócrates passa a discursar sobre o amor. Para ele, ao contrário de Agatão, Eros não é o próprio belo, mas aspira-o, tem o desejo de possuir algo. Lembra que quem ama deseja possuir aquilo que ama.
Sócrates faz uso do mito de Diotima: segundo ele, em determinado tempo, havia perguntado à profetisa Diotima, de Mantinéia, coisas sobre Eros. Isso revela que o discurso de Sócrates aparece não como uma sabedoria dele, mas como uma verdade que ele desvendou. De acordo com esse mito, Eros é filho de Poros (riqueza) e de Penia (Pobreza). Isso coloca Eros em uma posição intermediária: ele não é nem feio e nem belo, nem participa da bem-aventurança, característica essencial da divindade. Eros é um ser duplo, herdado da diferença de seus pais, o que o coloca numa posição intermediária.
O Eros de Platão revelado por Sócrates no Banquete é o próprio filósofo: está na posição intermediária, entre o saber e a ignorância, é aquele que aspira algo. O Eros em Platão é a aspiração do ser humano ao bem.
O Eros socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre fitos na Idéia. É, em rigor, o que Platão entende por "filosofia": a aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem.
O discurso de Diotima, na fala de Sócrates, está na tradição grega e coloca na idéia de Eros toda a atividade de criação espiritual. Eros é um poder educador e que matem unido todo o cosmo espiritual, isso porque ele é a aspiração comum a todo homem de buscar e se apossar por completo do belo.
Recordemos que Diotima definia acima a essência do Eros como a aspiração a apropriar-se 'para sempre' do Bem. [...] o Bem constitui o amor humano de si próprio, no seu mais alto sentido, então é evidente que o objeto sobre o qual ele recai, o eternamente belo e bom, não pode ser senão a substância deste mesmo eu.
Banquete encerra com a chegada de Alcibíades e seu bando: todos bêbados. Alcibíades põe fim aos louvores a Eros e inicia elogios a Sócrates. A passagem final de Banquete pode ser despercebida em uma leitura corrente, mas é de grande significado. Com o encerramento das honrarias a Eros e o início dos elogios a Sócrates, esse encarna o próprio Eros, ou seja, encarna a filosofia. Se não bastasse, Alcibíades anuncia ter grande amor por Sócrates: como pode um jovem de beleza exuberante fazer elogios e anunciar o seu amor (philia) a um velho tão desfeito como Sócrates? Insere-se aí a valoração da filosofia e um novo valor: a beleza interior superior à beleza exterior, perecível.
O Banquete trata da amizade, do amor e é um dos diálogos de Platão da categoria política. Mas como a discussão sobre a amizade pode inserir essa obra na problemática política?
Para Platão, a amizade é uma força educadora e nexo que mantém o Estado. A amizade é "forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética. " Não é possível existir uma comunidade que não seja baseada na amizade, pois essa tende para aquilo que é o bem e este une os homens. O bem é aquilo que é supremo, está impresso na alma, é o primeiro amado, aquilo que permite a admiração pelas demais coisas, em outras palavras, antes de tudo vem o bem, para o qual o ser humano deve voltar-se, aquilo que tudo une, ente unificador.
Depois de tantas exposições a respeito de Eros no Banquete, começando por Fedro, depois Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, Sócrates bem o caracteriza, como compêndio da aspiração humana ao bem.
Ao contrário do que diziam seus discípulos, a amizade (ou amor, representado pelo deus Eros) não é o próprio belo e próprio bem. Eros é originado de duas oposições, filho da riqueza e da beleza. Isso o coloca numa situação intermediária, não fazendo estar de nenhum lado oposto e extremo. A posição intermediária de Eros atribui-lhe movimento, sendo o mesmo movimento do homem em busca do bem supremo.
O bem é o que há de mais supremo, é o divino, como Platão expressa literalmente em A República e no próprio Banquete. É a forma unificadora, é o que harmoniza e unifica o cosmos e o homem; é o que todo ser humano deve buscar.
Toda forma de sociedade deve se voltar também para o bem e essa busca do bem, do supremo e divino, Platão a caracteriza como amizade, como Eros.
Por isso dizemos que Eros (philia, amor e amizade) é movimento, a busca incessante do homem pelo bem e que tanto o homem quanto a sociedade não pode existir sem esse movimento em direção ao que o bom e belo.
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