contos sol e lua

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sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Morte, O Espaço, A Eternidade – Jorge de Sena.

De morte natural nunca ninguém morreu. Não foi para morrer que nós nascemos, não foi só para a morte que dos tempos chega até nós esse murmúrio cavo, inconsolado, uivante, estertorado, desde que anfíbios viemos a uma praia e quadrumanos nos erguemos. Não. Não foi para morrermos que falámos, que descobrimos a ternura e o fogo, e a pintura, a escrita, a doce música. Não foi para morrer que nós sonhámos ser imortais, ter alma, reviver, ou que sonhámos deuses que por nós fossem mais imortais que sonharíamos. Não foi. Quando aceitamos como natural, dentro da ordem das coisas ou dos anjos, o inominável fim da nossa carne; quando ante ele nos curvamos como se ele fora inescapável fome de infinito; quando vontade o imaginamos de outros deuses que são rostos de um só; quando que a dor é um erro humano a que na dor nos damos porque de nós se perde algo nos outros, vamos traindo esta ascensão, esta vitória, isto que é ser-se humano, passo a passo, mais. A morte é natural na natureza. Mas nós somos o que nega a natureza. Somos esse negar da espécie, esse negar do que nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas. Para emergir nascemos. Contra tudo e além de quanto seja o ser-se sempre o mesmo que nasce e morre, nasce e morre, acaba como uma espécie extinta de outras eras. Para emergirmos livres foi que a morte nos deu um medo que é nosso destino. Tudo se fez para escapar-lhe, tudo se imaginou para iludi-la, tudo até coragem, desapego, amor, tudo para que a morte fosse natural. Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos a conhecemos, a sofremos, a vivemos, e mesmo assassinando a não queremos? Como nunca ninguém a recebeu senão cansado de viver? Como a ninguém sequer é concebível para quem lhe seja um ente amado, um ser diverso, um corpo que mais amamos que a nós próprios? Como será que os animais, junto de nós, a mostram na amargura de um olhar que lânguido esmorece rebelado? E desde sempre se morreu. Que prova? Morrem os astros, porque acabam. Morre tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova? Só prova que se morre de universo pouco, do pouco de universo conquistado. Não há limites para a Vida. Não aquela que de um salto se formou lá onde um dia alguns cristais comeram; nem bem aquela que, animal ou planta, foi sendo pelo mundo este morrer constante de vidas que outras vidas alimentam para que novas vidas surjam que como primárias células se absorvam. A Vida Humana, sim, a respirada, suada, segregada, circulada, a que é excremento e sangue, a que é semente e é gozo e é dor e pele que palpita ligeiramente fria sob ardentes dedos. Não há limites para ela. É uma injustiça que sempre se morresse, quando agora de tanto que matava se não morre. É o pouco de universo a que se agarram, para morrer, os que possuem tudo. O pouco que não basta e que nos mata, quando como ele a Vida não se amplia, e é como a pele do ónagro, que se encolhe, retráctil e submissa, conformada. É uma injustiça a morte. É cobardia que alguém a aceite resignadamente. O estado natural é complacência eterna, é uma traição ao medo por que somos, áquilo que nos cabe: ser o espírito sempre mais vasto do Universo infindo. O Sol, a Via Láctea, as nebulosas, teremos e veremos até que a Vida seja de imortais que somos no instante em que da morte nos soltamos. A Morte é deste mundo em que o pecado, a queda, a falta originária, o mal é aceitar seja o que for, rendidos. E Deus não quer que nós, nenhum de nós, nenhum aceite nada. Ele espera, como um juiz na meta da corrida torcendo as mãos de desespero e angústia, porque nada pode fazer nada e vê que os corredores desistem, se acomodam, ou vão tombar exaustos no caminho. De nós se acresce ele mesmo que será o espírito que formos, o saber e a força. Não é nos braços dele que repousamos, mas ele se encontrará nos nossos braços quando chegarmos mais além do que ele. Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste, a quem te amou, a quem te deu o ser – não nos aguarda, não. Por cada morte a que nos entregamos ele se vê roubado, roído pelos ratos do demónio, o homem natural que aceita a morte, a natureza que de morte é feita. Quando a hora chegar em que já tudo na terra foi humano — carne e sangue —, não haverá quem sopre nas trombetas clamando o globo a um corpo só, informe, um só desejo, um só amor, um sexo. Fechados sobre a terra, ela nos sendo e sendo ela nós todos, a ressurreição é morte desse Deus que nos espera para espírito seu e carne do Universo. Para emergir nascemos. O pavor nos traça este destino claramente visto: podem os mundos acabar, que a Vida, voando nos espaços, outros mundos, há-de encontrar em que se continui. E, quando o infinito não mais fosse, e o encontro houvesse de um limite dele, a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente, para que em Espaço caiba a Eternidade. Jorge de Sena.

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