quinta-feira, 26 de agosto de 2010

História e ancestralidade dos Druídas.


Que o druidismo moderno é uma espiritualidade viva e transformadora ninguém duvida. A cada ano, mais e mais pessoas procuram no druidismo um caminho espiritual pleno e recompensador através do qual possam expressar sua própria espiritualidade, permitindo o fluxo de inspiração de suas almas, de suas mentes e de seus corpos.
A Ancestralidade é um dos pilares do druidismo – não somente a ancestralidade sangüínea, que nos faz pertencer a uma família, um clã, uma etnia: mas também a ancestralidade espiritual – aquela através da qual identificamos as origens do druidismo, sua história, seu desenvolvimento e sua importância nos dias de hoje. Toda a prática druídica – o estudo, os rituais, o convívio – sempre tem em mente o agradecimento aos ancestrais por nossa herança física, mental e espiritual. O calendário celta mostra claramente a importância dos ancestrais na data sagrada de Samhain, o ano novo celta, em que se prestam homenagens aos que já se foram (O Samhain é, inclusive, a influência por trás da criação da data cristã de Finados, ou Dia dos Mortos).
Para o Druidismo, as disciplinas da História, da Arqueologia, da Literatura e da Antropologia são os instrumentos que nos permitem conhecer e honrar nossas origens e nossos Ancestrais - aqueles que viveram antes de nós, que abriram o caminho que hoje trilhamos – seja há dois milênios, dois séculos ou meros dois anos. Compreender as origens do druidismo e seu desenvolvimento através dos séculos fortalece a tradição, encorpa o próprio espírito do druidismo e inspira nossas práticas.
Essa ênfase atribuída à nossa história praticamente elimina do druidismo quaisquer teorias delirantes que afirmem que os druidas eram monoteístas, ou que não eram celtas, ou que eram uma das doze tribos perdidas de Israel, ou que viessem da Atlântida... O druidismo pauta seu desenvolvimento no conhecimento profundo da História – a sua, a dos celtas, a do mundo. Afinal, o druidismo é uma espiritualidade do mundo, emana do mundo e nos conecta com este mundo, de forma harmoniosa e equilibrada.
Não por acaso, a Druid Network – uma das mais importantes organizações druídicas mundiais – conta com a participação constante de um dos maiores especialistas em história do paganismo nas Ilhas britânicas (berço do druidismo): o Professor Ronald Hutton, titular da cadeira de História na Universidade de Bristol, Inglaterra.
Num importante ensaio entitulado “Who possesses the Past?” (“A quem pertence o passado?”), o Prof. Hutton responde que o passado não pertence a ninguém, “exceto aos mortos”. Ou seja: qualquer pessoa – pesquisador acadêmico ou diletante, ou mero curioso – que fizer qualquer afirmação categórica sobre o passado corre um enorme risco de ser facilmente desmentido pelo próprio passado – pela própria história e herança dos mortos a quem ele pertence.
Ainda há, dentro do universo acadêmico dos historiadores, pesquisadores sérios e bem intencionados, mas que põem a perder parte de seu trabalho por crerem que, graças ao seu diploma, o passado lhes pertence. Esses pesquisadores são vítimas inocentes da própria postura da Academia como um todo, que se fecha em seu ambiente de pesquisa e estudo e, ao fazê-lo, perde contato com o mundo à sua volta. No caso específico da História, várias autoridades respeitadas no assunto puseram sua reputação a perder (e nalguns casos realmente a perderam) por apegarem-se com demasiado fervor a suas percepções da História, recusando-se a admitir novas abordagens. Felizmente, a Academia desenvolveu em seu interior um interessante mecanismo que impede (ou minimiza) o monopólio de idéias: a própria pesquisa. Ao estimular interpretações pouco ortodoxas do passado, a Academia sempre se propõe o desafio da mudança e evita a estagnação – claro, desde que respeitando os limites do bom senso.
(No caso específico da História dos Celtas, um ótimo exemplo disso é a polêmica tese de Lord Colin Renfrew, eminente arqueólogo britânico, segundo a qual os celtas surgiram no continente europeu muito antes do que as teses mais conservadoras. A polêmica ainda é grande, mas os argumentos apresentados são fundamentados e não podem ser desmerecidos. )
Isso prova a importância de os historiadores abrirem suas mentes e estudos para teses que, num primeiro instante, contrariam o senso comum – mesmo quando essas teses emanam de fora do mundo acadêmico. Sempre dentro do universo da história celta, é célebre a história de um celtista amador que, num de seus trabalhos, sustenta que os cubículos de pedra encontrados na Irlanda eram usados como “saunas xamânicas” pelos celtas – afirmativa prontamente classificada por um distinto membro da comunidade acadêmica como absurda. Anos depois, com o avanço das pesquisas e estudos dos tais cubículos, esse mesmo historiador afirmou em um de seus livros que sim, eles eram usados para a “queima de ervas em rituais de cunho religioso”. Como se vê, a academia realmente não detém o monopólio sobre o passado...
Pelo contrário: mais e mais os pesquisadores modernos percebem que não há mais espaço para o desrespeito puro e simples de pesquisadores amadores – e menos ainda o desprezo por aqueles que fazem do passado a fonte de inspiração para a sua manifestação espiritual moderna – como os druidas modernos.
O Dr. Robert J. Wallis, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Southampton, anos atrás contribuiu com um excelente artigo para o informativo druídico The Druid’s Voice, editado pela British Druid Order. Nesse artigo, o Dr. Wallis assinala a importância de um diálogo franco e aberto entre o universo da pesquisa acadêmica os grupos ou indivíduos que resgatam as crenças espirituais de povos do passado – no caso específico, os druidas modernos. Para o Dr. Wallis, “os arqueólogos e os historiadores podem até ser classificados como guardiões do passado, mas não são seus donos nem detêm exclusividade sobre as teorias acerca do passado.”
Evidentemente isso não quer dizer que alguém que dedique poucas horas nos finais de semana para estudar o passado esteja em igualdade de condições com alguém que dedique sua vida à pesquisa, fazendo dela seu ofício. É cristalino que o próprio tempo dedicado – sem contar o acesso á informações acadêmicas – possibilitam aos historiadores profissionais um avanço mais rápido e sólido em suas pesquisas. Por outro lado, muitas vezes o pesquisador diletante – até por não se ver limitado pelos métodos e teorias acadêmicas – acaba tendo mais facilidade para romper com essas limitações e propor novas visões, novas teses, novas abordagens. Isso é ainda mais evidente no caso dos druidas modernos, visto que, como já dito acima, para os druidas a História é a ponte que nos liga ao passado, e o passado é a voz de nossos Ancestrais.
O druidismo moderno é mais uma evolução da contínua e transformadora história do druidismo, desde suas origens célticas (ou até mesmo antes delas) até os nossos dias, passando pela romanização e posterior cristianização das terras celtas, da influência das levas migratórias de outros povos, do “Renascimento Druídico” na Irlanda e no País de Gales do século XVII (um movimento, diga-se de passagem, muito mais sócio-cultural do que espiritual), do Romantismo e das sociedades secretas do século XIX, do reconstrucionismo e do xamanismo celta do século XX. A compreensão desses processos, dessas múltiplas fases, é fundamental para que o druidismo moderno seja de fato uma espiritualidade significativa, válida e coerente – “só sabe para onde vai quem sabe de onde vem”... Para que isso ocorra, o trabalho dos arqueólogos e historiadores é fundamental, como é igualmente importante que o público em geral tenha acesso à informação acadêmica e possa, como sabiamente propõe o Dr.Wallis,
dialogar com a Academia.
Toda essa questão é abordada de forma brilhante pelo Prof. Simon James, um dos mais importantes nomes da pesquisa celta, que pondera que ninguém “descobre o passado, pois ele está perdido.” O que os pesquisadores modernos fazem, na verdade, é, com base nos registros, documentos, vestígios e monumentos, construir as Histórias – note-se o significativo plural, referindo-se às diferentes versões a que aludimos anteriormente. Mas note-se ainda mais o verbo ‘construir’: pois é a partir dos poucos e esparsos dados concretos acerca do passado que os historiadores e pesquisadores – acadêmicos ou não - “constroem” a História. Os vestígios dos celtas – seus utensílios, suas lendas, seus costumes sociais, os registros de observadores estrangeiros – são os blocos que possibilitam a construção da história do druidismo; a inspiração do pesquisador, que tem como origem sua compreensão da cultura celta, é a argamassa que fixa os blocos dessa História. Usando os mesmos blocos e a mesma
argamassa, dois construtores diferentes erguerão suas casas de formas diferentes, atendendo a suas necessidades e seus interesses diferentes. Isso não torna a casa de um melhor ou pior do que a do outro. Da mesma forma, partindo das mesmas informações, dois pesquisadores (acadêmicos ou não) construirão versões diferentes da História dos celtas, de acordo com suas motivações, seus valores e suas percepções, e isso não torna uma versão superior ou inferior à outra.
Eis porque temos, atualmente, uma diversidade de “druidismos”. Nalguns casos, as visões do que tenha sido o druidismo ancestral e, principalmente, a relevância desse druidismo ancestral para nossos dias pode parecer conflitante. O tema, magistralmente explorado pelo Professor Ronald Hutton em sua mais recente obra, “The Druids”, prova o contrário: as diferentes correntes druídicas por ele identificadas hoje são, na verdade, todas elas manifestações válidas, pois todas emanam de determinados aspectos do druidismo histórico atualmente enfatizados por esta ou aquela corrente filosófica druídica. É a isto que se referia anos antes Philip Shalcrass, fundador da British Druid Order, quando afirmou que a arqueologia, a história, a literatura e o folclore fornecem o material para a construção do druidismo moderno. Mas ele ressalva: o resultado dessa construção depende de nós.
Como, então, lidar com essa diversidade de filosofias druídicas? Com a mesma sabedoria que os historiadores verdadeiramente sérios e responsáveis lidam com teses por vezes conflitantes. Mais uma vez recorrendo ao Prof. Simon James:
"Todas as interpretações da História são moldadas e influenciadas por nossas próprias formas de pensar o mundo, nossos preconceitos, e nossas (geralmente omitidas) motivações. Estas, por sua vez, dependem de nossas experiências pessoais, de nossa educação e de nossa herança cultural. Isso se aplica a todos, inclusive (e não menos) os arqueólogos e historiadores. Nem os acadêmicos, nem ninguém conhece a Verdade sobre o que foi o Passado.”
Difícil acreditar que alguém em sã consciência pense ou aja de outra forma. Diria ainda mais: quem persistir em não reconhecer essa postura está fadado a ficar para trás, a desaparecer, como tudo aquilo que é anacrônico e ultrapassado – seja dentro da academia ou no universo do druidismo moderno.
Ainda de acordo com o Prof. James, é justamente a ênfase pessoal dos diferentes pesquisadores (acadêmicos ou não) que pode levar um mesmo corpo de evidências a gerar interpretações notadamente distintas entre si, sem que isso implique em manipulação, distorção ou má fé dos pesquisadores (acadêmicos ou não...). Da mesma forma, as informações de que dispomos sobre o druidismo e os celtas, por mais escassas que sejam, “mostam-nos algumas coisas bem definidas, que apóiam algumas interpretações e descartam outras. Elas (as informações sobre os celtas) nos orientam rumo às explicações mais plausíveis sobre o que realmente foi o passado”. Novamente, note-se o plural ‘explicações’: não há uma única Verdade sobre o Passado celta e druídico; o que há é a interpretação do que tenha sido, pautada nas evidências inquestionáveis sobre os celtas e druidas do passado.
Atualmente, diversos autores e lideranças druídicas ao redor do mundo adotam essa abordagem saudável e responsável, unindo os frutos da pesquisa acadêmica à sua interpretação e inspiração para fazer do druidismo um caminho espiritual digno de respeito e reconhecidamente válido. Em meu próprio trabalho - como escritor, instrutor e celebrante -, procuro sempre manter essa mesma postura, na tentativa de contribuir para que esse belo processo continue em curso.
0 Professor Niall Ferguson, talvez o mais brilhante historiador de nossos tempos, afirma que “a atividade da História é, essencialmente, um compromisso com os mortos”. Como já dito, a Ancestralidade é um dos pilares do druidismo – os Ancestrais, mesmo que já mortos, vivem para sempre através de seus feitos, seus monumentos, suas lendas e, principalmente, em nossas memórias. Lidar com o druidismo é lidar com os mortos – tanto pela sua própria filosofia, quanto pelo fato de que os druidas ‘clássicos’ já não caminham entre nós. Mas é incontestável que, por tudo o que sabemos sobre os druidas da Antigüidade, eles jamais deixarão de ser uma fonte viva e inspiradora para nossas vidas, no aqui e no agora.
'Nós não controlamos o passado, e nosso conhecimento sobre ele é limitado. Não podemos, contudo, correr o risco de esquecer o passado – afinal, ele ainda é extraordinariamente poderoso. O Passado conserva sua capacidade de inspirar sentimentos extremos como a afeição ou o ódio, lealdade ou desconfiança, aceitação ou busca apaixonada. Os mortos nem sempre estão quietos, e o passado jamais será um assunto seguro a ser contemplado. Assim como no Outro Mundo celta, o Passado está para sempre no limiar da experiência humana, seduzindo-nos e ameaçando-nos, chamando nossa atenção e constantemente irrompendo nos nossos afazeres cotidianos com uma força irresistível, a um só tempo parte de nós mesmos, mas para sempre separados de nós.” Ronald Hutton.

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