sábado, 2 de novembro de 2013
Anjo da Vida.
Duas mulheres, uma anciã e uma jovem viúva, estão sentadas em um quarto, na penumbra. As mãos da jovem seguram o retrato do marido que acaba de perder a vida em um acidente. Tinham-no enterrado na manhã daquele dia.
Seus vestidos de luto fazem com que dos seus rostos e mãos emane uma pálida claridade.
Por muito tempo as duas mulheres ficaram sentadas, sem palavras e sem lágrimas. Finalmente a anciã tira das mãos da neta o retrato do marido e diz com voz baixa:
A anciã não encontrando palavras para consolar a jovem, tenta uma parabola de Jesus:
- Filha, ouve o que quero dizer-te.
A jovem não responde, mas a anciã começa a falar:
- Quando Deus me deu o primeiro filho, aconteceu que ele ficou doente e eu, sentada à noite ao seu lado, com uma mão no berço, e a outra no terço adormeci.
Tive um sonho muito estranho: detrás de uma cortina longa e densa saiu um anjo escuro e aproximou-se do berço, querendo levar o meu filho. Estendi logo as mãos com o terço e sobre o berço gritei:
- Não, Morte, não te deixo levar o meu filho!
O anjo sorriu e disse:
- Não me chamo Morte, chamo-me vida! Precisarei levar o teu filho. Ou preferes trocar? Queres este em lugar do bebê? Erguendo ele a cortina, saiu de lá um menino bonito e forte, de pele clara, olhos azuis e cabelos louros em caracóis. Mas a mim era estranho e gritei:
- Não, não o quero! Antes mata-me.
Ninguém pode matar – replicou o anjo – Precisas concordar com a troca! Ou preferes este?
O menino desapareceu e em seu lugar apareceu um jovem.
- Toma este! Vê como ele é belo, seus membros bem proporcionados, corpo e alma com forças vibrantes.
- Não, não! – gritei outra vez.
E o anjo disse:
- Mas este amarás com certeza. – E mostrou-me a imagem de um homem de barba escura, bronzeado pelo sol e pelos ventos.
- Não, – voltei a gritar – nunca o amarei! Vou odiá-lo!
- Mas este aqui – o anjo continuou a argumentar comigo: era um velho de ombros largos e cabelos grisalhos.
- Não, não, não! Jamais trocarei. Vai embora e não toques no meu filhinho!
O anjo sorriu outra vez, dizendo:
- Certamente irás trocar e serás feliz. Vida e morte são uma coisa só. A morte não existe.
Assim dizendo, desapareceu. Acordei trêmula, ao lado do berço do meu filho que estava dormindo tranqüilamente. Os anos passaram e eu fui trocando: o bebê pelo menino, o menino pelo jovem, o jovem pelo homem e o homem pelo velho. E fui me lembrando de cada um como o tinha visto no sonho.
De todos eles, só o grisalho tu bem conheces: é meu filho, o teu pai!
A anciã se calou. E a jovem viúva ergueu o retrato do marido, dizendo:
- Mas isto aqui não é troca, vovó, isto é roubo!
- Espera – disse a anciã – ainda não terminei. Na noite seguinte o sonho se repetiu, e na minha visão o anjo voltou.
Vi outra vez o menino, o jovem, o homem e o velho e não quis saber nada deles. Mas, depois de mostrar-me tudo como na noite anterior, o anjo disse:
- Até aqui era só por brincadeira. Agora precisas aceitar uma troca bem mais difícil: aceita este em troca!
- Mas não vejo ninguém! – exclamei.
- Não podes vê-lo – replicou o anjo.
- Mas também não ouço ninguém.
- Pois ele não se deixa ouvir – respondeu o anjo.
Eu tateava ao redor:
- Ninguém está aqui!
E o anjo disse:
- Tampouco podes palpá-lo.
- Então zombas de mim?
- Não. Tu não me entendes. Vou falar de outra maneira.
- Tu me darias os teus olhos em troca do filho?
- Leva-os! – gritei.
Logo caiu uma escuridão profunda sobre mim, mas ouvia ainda a respiração tranqüila do meu filho, como se fosse uma brisa noturna deliciosa.
- Mas não é ainda suficiente – disse o anjo – Dá-me a tua audição.
- Leva-a! – ordenei, e peguei o corpinho de meu filho com as duas mãos, beijando-o ternamente.
- Mas ainda não é suficiente – exigiu o anjo novamente.
- Dá-me todos os teus sentidos.
- Leva-os todos! – gritei, e afundei no nada.
- Onde está o meu filho? Onde?
- Podes crer: ele vive. O que desaparece dos sentidos nem por isso está morto.
A morte não existe para aqueles que tem Jesus como seu salvador, Deus criou só a vida. Entendes agora?
A estas palavras do anjo acordei. Muitas vezes tenho meditado sobre o que o anjo disse, e paulatinamente comecei a compreender. Muitas vezes somos servos dos nossos sentidos. Mas Deus como Senhor dos mil sentidos consegue transformar o que amamos, mil vezes.
São transformações que não nos permitem ver, nem ouvir, nem apalpar. É por isso que falamos da morte.
Mas a morte não existe quando se tem Jesus como vida.
A vida natural rouba, e dá sem cessar. Se soubermos isto, qualquer sofrimento poderá transformar-se em alegria antecipada.
A anciã calou-se. Depois de algum tempo a jovem viúva repousou a cabeça nas mãos da velha, perguntando:
- Quem te ensinou tudo isso, amada avó?
- A vida, minha filha, a vida…
E a anciã acrescentou:
…e a morte!Revista Universo Maçônico.
Ir. Carmo Capozzi
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