segunda-feira, 9 de março de 2020

Somos todos mágicos?

O que é a Magia? Sinceramente não sei lá muito bem, talvez porque seja possível considerá-la segundo diferentes perspectivas, variando correlativamente as respectivas definições… Aliás, não gosto muito de definir coisas, porque já dizia o antigo sábio, definir é limitar, e neste caso (e em minha humilde opinião), a Magia é ilimitada e ilimitável! Não sei se já repararam que o título desta despretenciosa conversa é uma pergunta. Ora, quem pergunta quer saber! Ou seja — eu não sei, e gostava que me dessem alguma resposta! Será que somos todos mágicos? Todos, mesmo? Ou só alguns? Ou, quem sabe, talvez nenhum? Ou talvez apenas aqueles que tiraram o respectivo curso, como o Harry Potter na Escola de Feitiçaria de Hogwarts?… Dizia eu há pouco que a Magia é ilimitada e ilimitável… Não acreditam? Ora comecemos por alguns exemplos: — a Magia dum pôr-de-Sol num mar de Verão; — a Magia dum sorriso de criança; — a Magia duma obra de arte que nos encanta… Que Magia é esta? Fascinação, graça, enlevo, sedução… ou feitiço!? Feitiço lembra feitiçaria… que é talvez uma forma de baixa magia, mas não percamos agora tempo a discutir isso. Os prosaico-pragmáticos dirão apenas: Oh! Não passa duma metáfora, a magia dum sorriso… Bom, metáfora ou não, um sorriso no momento certo tem um espantoso poder de cura — não será isso Magia, e da melhor? Mas ainda há mais: vejamos uma outra espécie de Magia, e uma das não menos curiosas: — a Magia da Ciência. Que tal? Bom, já estou mesmo a ouvir os comentários: não pode ser! Ou é Magia, ou é Ciência!… Mas a verdade é que parece que por vezes, no espírito do ser humano contemporâneo, a Ciência tem a sua Magia, e uma Magia eficaz, que através da tecnologia produz os efeitos mais surpreendentes: a fissão nuclear, os computadores, os clones, as viagens espaciais, a engenharia genética, a VA [Vida Artificial]… E não só! Em geral associamos a Magia a um poder que produz efeitos visíveis por meio de forças invisíveis — ora, a verdade é que estamos rodeados, para não dizer constantemente interpenetrados, por forças invisíveis (e nem sequer me refiro ao invisível da religião ou da mística, ou dos pressentimentos e dos sonhos), mas já que falámos em Ciência, e, por arrastamento, em Tecnologia, aí vai: — basta-nos referir o invisível electromagnético que «governa» as nossas vidas com surpreendentes efeitos visíveis e é tanto ou mais fantástico que os assombros e prodígios das histórias mágicas de bruxas e feiticeiras dos séculos passados: a electricidade, as ondas de rádio, o telemóvel, a TV, os raios-X, o ciberespaço, a ressonância magnética nuclear, a Internet, o comando a distância sob todas as suas formas, a RV [Realidade Virtual], os infravermelhos, as microondas, a electrónica em geral… Será esta a Nova Magia? ¿Terá a ver com as novas modalidades em que a «velha Magia» se intercruza com as novas tecnologias? Por exemplo, os New Agers usam cristais sólidos (tal como as novas tecnologias usam cristais líquidos) para memorizar, armazenar e processar «espírito»; os praticantes de channelling e os adeptos de OVNIlogia transformam as «mensagens» recebidas em «informação viva». Por outro lado, muitos cristãos evangélicos acreditam que a tecnologia das comunicações, que leva a Palavra (o Verbo!) aos recantos mais remotos do planeta, é o rastilho que contribuirá para fazer acelerar o «fim dos tempos», tal como se lê no Novo Testamento: «E este evangelho do Reino será prègado em toda a orbe, para dar testemunho a todos os povos, e então virá o fim» (Mateus 24, 14). Alguns chegam ao ponto de afirmar que os Anjos do Apocalipse não são mais do que os satélites globais de comunicações. E quanto à velha Magia, já agora? A velha é muito velha, vem dos arcanos tempos dos Colégios de Magos — do Egipto, da Caldeia, da Pérsia, donde teriam vindo os famosos Magos que seguiram a Estrela de Belém até ao Presépio onde havia nascido o Salvador do Mundo. Sem querer entrar em excessiva pormenorização histórica, para o que não tenho nem capacidade nem aqui o tempo, basta-nos adoptar a distinção que os antigos Gregos faziam entre os que se dedicavam às kryptai technai (lat. secretae artes), ou seja, uma distinção tripartida: De imediato vinha o que os Gregos chamavam o goês (pl. goêtes), o mágico vulgar, que se dedica a fazer «passes mágicos» e adivinhações populares, muitas vezes apenas ilusionistas, de tal modo que essa palavra acabou por ter a conotação de charlatão, bruxo, impostor. A magia praticada por esses, a Goêteia, já no tempo de Sócrates (séc. V a. C.) se identificava com superstição e impostura. Um bom degrau acima temos o magos (pl. magoi), de que o Evangelho de Mateus nos dá como exemplo os que vieram do Oriente em direcção a Belém da Judeia, seguindo a Estrela que os conduziu ao berço do Salvador. Os verdadeiros magoi eram uma classe iniciática e sacerdotal que proveio da Média e da Pérsia, e entraram em cena na Grécia no século VI a. C. Pelo testemunho de fontes tão diversificadas como Heródoto, por um lado, ou a Bíblia, por outro — o sonho do Faraó (Gen 41, 8), o sonho de Nebuchadnezzar (Dan 2,2), etc. — sabemos que os Magos invocavam o fogo do céu, propiciavam sacrifícios, interpretavam sonhos, augúrios e obravam prodígios. Mas, com o correr dos tempos, tão-pouco os magoi escaparam ao anátema: nos primeiros séculos da era cristã — talvez por influência das acusações dos apologetas «ortodoxos» cristãos (p. ex. Justino o Mártir, Ireneu de Lião, etc.) — também já eram acusados de pertencer a torpes sociedades secretas, e de praticar incesto, adoração de maus demónios, sacrifícios humanos, canibalismo, barbarismo, etc. Finalmente, a mais elevada classe de magoi era constituída pelo que os Gregos chamavam theios anêr, o «homem divino» (atenção!, «homem» varão, e não «homem» ser humano em geral!). O theios anêr era um deus ou um daimon disfarçado, percorrendo o mundo em um corpo aparentemente humano. O «homem divino» podia fazer tudo quanto o magos podia fazer, nomeadamente a prática do bem (embora também pudesse amaldiçoar os «maus»), mas era sobretudo capaz de realizar milagres e prodígios graças ao poder divino que tinha em si, sem precisar de rituais nem de incantações exteriores. Um exemplo de «homem divino» é-nos dado por Cristo Jesus: reparai que todos os «prodígios» ou «sinais» que Ele realizava, fazia-o sem precisar de palavras encantatórias, gestos rituais ou traçado mágicos, que eram imprescindíveis ao mágico vulgar como lemos nos manuais de Magia desses tempos. Um outro exemplo documentado de theios anêr é o do pitagórico Apolónio de Tyana, contemporâneo de Jesus, cuja exaustiva biografia, redigida por Filostrato a pedido da imperatriz romana Júlia Domna (sécs. II-III d. C.), contém muito material que os estudiosos consideram em parte verdadeiro, e em parte fantasioso, sendo que este útimo faria parte duma espécie de «encomenda» do Império romano para fazer dele um herói mítico do seu paganismo, por oposição à crescente e preocupante disseminação cristã. Seja como for, e quer se trate de «velha» Magia com as suas ramificações de Hermetismo, de Astrologia, de Alquimia, de Theo-Sophia (Mestre Eckhart, Paracelso, Giordano Bruno, Jacob Boehme, Eckartshausen, Swedenborg, Schelling, etc.), dos ocultismos do século XVI (Agrippa) ou do século XIX (Eliphas Lévi), do Teosofismo de Helena P. Blavatsky ou ainda da «recuperação» da tradição mágica da Wicca, — ou da «nova» Magia da Ciência e das tecnologias de que falámos, os princípios são sempre os mesmos: — O universo é uma central global de força e energia; — Essa energia está em tudo e em todos — é o princípio das correspondências; — Essa energia, ou essa força, pode ser concentrada e armazenada; — Essa energia, ou essa força, pode ser «programada» ou modulada com alteração da sua qualidade vibratória; — Essa energia modulada constitui um «poder» que pode ser dirigido com uma finalidade específica para exercer efeitos sobre determinado alvo ou função. A diferença entre a «velha», ocultista, e a «nova», tecnológica, está nos intrumentos utilizados: a velha utiliza varinhas, cristais, velas de diversas cores, óleos, palavras misteriosas, símbolos, incenso, cânticos, etc. e, sobretudo, o PODER INTERNO DO MAGO, ao passo que a nova utiliza fios eléctricos, microchips, circuitos integrados e outros utensílios e aparelhagens dependentes de leis da Física, da Química, da Matemática, etc. que podem ser manipulados «por fora», sem o concurso do poder interno do mago — neste caso, entenda-se, do técnico ou do simples utente que saiba carregar nos respectivos botões. Mas mesmo sem entrar em tecnologias «mágicas» que são um dos grandes feitos da nossa época, penso que podemos dizer que de facto «somos todos mágicos», na linha do que descobriu o erudito padre dominicano André-Jean Festugière (1898-1982), estudioso das religiões antigas, das mitologias greco-romanas, do Hermetismo, do Cristianismo primitivo: ao analisar o Corpus Hermeticum, que ele traduziu na íntegra, Festugière julgou discernir nesse material uma clara diferença entre o que ele chamou um «Hermetismo popular» e um «Hermetismo erudito». No primeiro incluiu a Astrologia, a Alquimia e as Artes Ocultas, ao passo que o segundo seria uma Philo-Sophia gnóstica mais sofisticada que acentua o poder que o ser humano tem para descobrir dentro de si o conhecimento (Gnôsis) de Deus e do Cosmos — ou seja, no fundo o ser humano é um daimon astral em disfarce corpóreo, capaz de recuperar os seus poderes cósmicos através da Gnose, ou da sua natural capacidade de iluminação mística. O próprio Cristo nos dá uma pista incontestável. Se Ele disse: «Aquele que crê em mim, as obras que eu faço, também ele as fará, e maiores do que estas fará» (João 14, 12) — logo, somos todos mágicos, ou melhor: Magos! Mas será realmente assim? Na verdade, Jesus pronunciou esta afirmativa no Sermão da Ceia, não no Sermão da Montanha (ou da Planície!) — o que significa que estava a dirigir-se aos «escolhidos», e não às multidões em geral… Não tenhamos receio: trata-se apenas de um ou outro degrau temporário! As multidões estão apenas num degrau abaixo na escadaria da Evolução (ou da Iniciação, para quem opte por entrar numa Escola de Mistérios), mas subirão um dia, porque a Evolução é ascendente. Nem podia ser de outro modo, o simples facto da vinda histórica de Cristo como Salvador e Redentor é a prova de que todos somos «escolhidos», pois Ele mesmo o disse: «Não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo» (João 12, 47). Bastaria que um só de nós se perdesse, e a Sua missão teria sido vã: logo, somos todos escolhidos, somente depende do nosso esforço ascendermos mais depressa ou mais devagar. Além disso, Ele foi muito explícito quando afirmou aos Seus discípulos em Cafarnaúm: «Em verdade vos digo, o que ligardes na terra será ligado nos céus, e o que desligardes na terra será desligado nos céus» (Mateus 18, 18). É um ensinamento importante, este de Jesus aos Seus discípulos: tudo quanto se ata ou desata cá em baixo, tudo quanto se tece ou destece, projecta-se para o alto e tem um efeito análogo nos reinos supra-sensíveis e por conseguinte no Banco Cósmico (Central de Energia Acumulada), além de que vai construindo — ou desfazendo — a nossa futura morada «nos céus». Quereis um exemplo da nossa magia, singelamente humana mas altamente eficaz? Quando, instintivamente, pousamos a mão sobre o ombro ou sobre a cabeça dum parente ou dum amigo que está a sofrer, para lhe transmitirmos ânimo e lhe darmos «apoio moral», no fundo estamos a repetir um gesto dum ritual mágico muito antigo, que encontramos reproduzido em grutas pré-históricas, em baixos-relevos egípcios ou expresso noutras culturas e civilizações, incluso no Cristianismo: a «imposição das mãos». Este rito é eficaz, de um ponto de vista do «Mago» (e não do goês, entenda-se!), porque primeiro o Mago ergueu a mão, ou ambas as mãos, de palmas para cima para receber o influxo benéfico da divindade (ou da Energia Cósmica), armazenando-o em si e podendo portanto transfundi-lo, através das mesmas mãos, a outrem. Até em simples jogos infanto-juvenis como «brincar às adivinhas», ou em jogos pré-adultos como queimar uma alcachofra ou atirar as meias por cima dos pés da cama, ao deitar, para «ver» qual o nome do/da namorado/a que as meias formaram ao cair, a tentação mágica subjaz em todos nós — nem que seja com a desculpa da imaturidade. Mas mesmo depois, já mais velhinhos, quando preenchemos o boletim do Totoloto ou do Totobola, no fundo estamos, sem nos darmos conta, a «convocar» (para não dizer invocar) alguma misteriosa força invisível que nos transmita o dom da precognição e nos faça acertar nos resultados correctos. Até no acto ritual de apagar as velas dum bolo de aniversário, ou ao fazer um brinde tocando nos copos, emitindo votos de bons desejos, estamos a convocar as energias positivas para o bom sucesso dalguma coisa — ou longa e feliz vida para o aniversariante, ou êxito na empresa, ou situação, que justificou o brinde. Por isso devemos ter o maior cuidado com o que pensamos, dizemos ou fazemos, pois todos somos receptores e emissores de energia, logo, cuidado! podemos estar a fazer magia negra sem o saber, basta um ressentimento, uma inveja, um dito rancoroso, um acto de vingança, uma projecção de ódio — e as energias invisíveis desencadeadas dirigem-se para o alvo. O que é muito grave, por todas as razões, não só pelo prejuízo que tal atitude causa no nosso avanço espiritual, mas também por razões de mera segurança pessoal: se o alvo está protegido — e muitas vezes basta ser uma pessoa boa sem maus sentimentos, ou correctamente devota, ou bem-fazeja, ou que esteja nesse momento a ter pensamentos amorosos e positivos — dá-se o «choque de retorno», e o emissor de energias malévolas apanha com o ricochete daqulo que emitiu. O erro dos baixos mágicos é que usam e abusam das energias invisíveis, que buscam controlar para a obtenção de inconfessáveis proveitos pessoais. Cuidado, pois! Longe de nós a veleidade de pretender fazer-nos servir pelo sobrenatural — e muito menos pelo divino. Até no emprego duma simples oração é preciso a maior cautela! A oração é uma poderosa invocação mágica, sem dúvida, e por isso nunca a devemos usar para mudar as coisas, a vontade ou a maneira de ser dos outros e muito menos os desígnios de Deus — mas única e exclusivamente para louvá-Lo, render-Lhe adoração e agradecer-Lhe, ou, quando assuma a forma de súplica, para nos sabermos amoldar à Vontade Divina com aceitação compreensiva do que a razão não alcança — e grato júbilo. Quando estou enfermo e rezo: «Meu Deus, cura-me!», devo logo acrescentar, seguindo o exemplo de Cristo: «Pai, que se não faça porém a minha vontade, e sim a Tua». E por aqui me fico, porque ficarmo-nos com a Vontade de Deus é compreender luminosamente que a Vontade de Deus é Boa, e que se eu souber amoldar a minha Vontade à Vontade Divina, estou de certeza a contribuir não só para o meu Bem, mas para o Bem de todos nós. António de Macedo.

sexta-feira, 6 de março de 2020

William Shakespeare.A Bíblia Laica .

SHAKESPEARE - A BÍBLIA LAICA Os trabalhos de Shakespeare e a Bíblia são tesouros estreitamente relacionados com a vida cultural e espiritual dos povos ocidentais. Ambos são proeminentes entre as forças que construíram os melhores e mais duradouros traços de nossa presente civilização. Incorporando todos os melhores princípios fundamentais existentes no âmago da vida, eles têm sido tecidos em nosso pensamento e aspiração. Inúmeras expressões que foram dadas àqueles princípios em arte e literatura têm sido diretamente inspirados pelas Escrituras Sagradas, por um lado, e pela Bíblia Laica de Shakespeare, por outro. Parece haver ampla justificativa para olhar Shakespeare como a Bíblia Laica quando se leva em consideração suas muitas correspondências, dentro e fora, com as da Bíblia Sagrada. Ambas são “bestsellers”. Ambas possuem uma coleção de Livros, as Sagradas Escrituras tendo sessenta e seis e Shakespeare, trinta e sete. Ambas têm textos apócrifos. Ambas suscitaram inumeráveis comentários. Livrarias especiais têm-se dedicado ao seu estudo. Em dicionários de citações, a Bíblia e Shakespeare lideram todas as outras obras. No volume de citações do Bartlett, o Novo Testamento e o Velho Testamento combinados tomam trinta e seis páginas, enquanto que Shakespeare requer não menos que cento e vinte e duas. Citações destas obras primas dotaram os autores com incontáveis títulos para livros e artigos. Uma simples expressão de um solilóquio de Macbeth - “amanhã – e amanhã” - serviu de título para onze livros. Muitas expressões bíblicas e citações foram inseridas em textos de Shakespeare. De acordo com um levantamento sobre este assunto, Shakespeare citou não menos que quarenta e dois livros da Bíblia e dos Textos Apócrifos. Shakespeare e a Bíblia são inesgotáveis fontes de inspiração. Cada época descobre neles o que mais necessita. Daí, o fluxo de material explicativo desde sua primeira aparição. A reinterpretação se torna necessária quando as condições mudam, quando o conhecimento se amplia e a experiência se aprofunda. Mas, apesar das mudanças, a Bíblia e Shakespeare continuam vivos. Em todas as épocas, as eternas verdades permanecem e em nenhum lugar podem ser encontradas em plenitude, beleza e sublimidade com que encontramos tanto na Bíblia como em Shakespeare. Excluindo as Escrituras, as peças de Shakespeare constituem o maior estudo do homem. “Depois de Deus”, escreve Alexandre Pushkin, o maior poeta da Rússia, “Shakespeare é o maior criador dos seres vivos. Ele criou uma humanidade inteira”. 3Estas peças lidam com a natureza externa e interna do homem; com os mundos visível e invisível. Os dois lados da vida, o material e o espiritual, são tratados com igual certeza e consistência. Os elementos sobrenaturais nos dramas não são invenções incidentais introduzidas com o propósito de efeitos teatrais. São fundamentais ao tema. Qualquer um que possua as chaves para a sua significação mais profunda compreende uma riqueza de sabedoria. Ninguém com conhecimento das doutrinas esotéricas pode ter qualquer dúvida quanto à familiaridade de Shakespeare com a sabedoria dos Iluminados. Estudos ocultos de magia, negra e branca, recebem um tratamento esclarecedor em “Ricardo III” e na “Tempestade”, respectivamente. Os significados espirituais dos Solstícios de Inverno e de Verão são desdobrados em “Conto de Inverno” e “Sonho de uma Noite de Verão”. Sob o véu da fantasia, o último é a transição virtual do ritual do casamento místico como encenado nos Mistérios Eleusianos, nos quais o local do drama é uma floresta perto de Atenas. Os “Sonetos” traduzem as doutrinas Herméticas em poesia, enquanto as tragédias como “Hamlet” e “MacBeth” trazem os seres e as forças do mundo espiritual impenetrável para a visibilidade. Cada um dos dramas trata de alguma lei oculta ou princípio espiritual. Isto constitui seu tema esotérico. Tudo que encontra expressão no desdobrável roteiro, surge inevitavelmente de acordo com a natureza desta idéia arquetípica central. Considerando-se as características internas comuns a Shakespeare e à Bíblia, observa-se que toda a literatura pode ser dividida em duas classes – sagrada e secular. Acredita-se que a literatura sagrada provenha de uma fonte de inspiração mais alta que a secular. Acredita-se que a sabedoria divina tenha encontrado expressão nas bíblias do mundo numa maneira mais direta e imediata do que qualquer outra literatura. Em outras palavras, é uma parte da crença religiosa de todos os povos que, nas sagradas escrituras, Deus estabelece uma comunicação direta com o homem, revelando-se a Si Mesmo de um modo especial e comunicando, àqueles desejosos de recebê-los, mistérios pertinentes à vida espiritual interna e modos e maneiras pelas quais o homem progressivamente desdobra sua divindade latente. Com este conceito geral, o esoterista concorda plenamente. Há, no entanto, quem afirme que a distinção geralmente feita entre literatura sagrada e secular é puramente arbitrária e que, enquanto a classificação serve para um propósito útil, existe uma linha firme de demarcação como muitas pessoas acreditam. Aqueles que mantêm este ponto de vista acreditam que a única diferença entre as duas classes é sutil, uma fundindo-se imperceptivelmente dentro da outra. Sustentando esta posição, eles sinalizam que elementos humanos certamente se introduziram nas escrituras sagradas e que as verdades sagradas recebem frequentemente expressão superlativa na literatura secular. Neste ponto, Swedenborg argumenta dizendo que, enquanto é verdade que a diferença é tênue, há um grau discreto. Isto quer dizer que há um ponto na escala ascendente de valores no qual um novo fator entra e um novo princípio se torna operante, e que resulta em trazer algo novo. Por exemplo, toda vida é una, mas nem tudo o que vive é humano. Há vida na planta e no animal. Mas, quando uma planta adquire a faculdade de sentir dor e prazer e se torna capaz de locomover-se, ela se torna animal; e quando um animal adquire as faculdades racionais da mente, ele se torna humano. Graus discretos marcam a distinção entre reinos da vida e da natureza. Aplicando isto à literatura, Swedenborg observou que um grau discreto divide a literatura sacra da secular. A literatura sacra é, em princípio, puramente religiosa. Mas nem todos os trabalhos religiosos são escrituras sacras. Para serem assim qualificadas, eles têm que lidar com assuntos espirituais e também possuir um certo conteúdo interno. Isto é, escondido debaixo da forma externa e envolto em história e biografia, é necessário haver na fábula e na parábola uma estrutura espiritual, um conteúdo esotérico, claramente perceptível àqueles que desenvolveram em si o conhecimento espiritual necessário, mas irreconhecível por aqueles que não vêem “mais do que seus olhos podem ver”. Escrituras sagradas, além disso, são registros da vida, trabalho e/ou ensinamentos de grandes Salvadores do mundo. Consequentemente, elas lidam exclusivamente com os mistérios espirituais mais profundos que o homem consegue alcançar. Resumindo, podemos dizer que a literatura que lida com a vida espiritual e é construída em torno de Mestre e Salvadores do mundo, e, além disso, se revestem de uma estrutura baseada nos mistérios, torna-se, em virtude destes vários atributos e elementos, escrituras sagradas. Todas as outras literaturas têm menor classificação. Voltando à análise da literatura não sagrada, encontraremos, por sua vez, que ela se divide em duas. Na primeira, temos a literatura que é possuidora de um sentido “interno”; na segunda, o “externo” somente. A primeira, como as escrituras sagradas, está fundamentada nos Mistérios e contém, na sua forma externa, um véu de Sabedoria Arcana claramente organizada, enquanto que na outra classe tal esoterismo não está presente. Para o esoterista, portanto, tal distinção que fizemos não é aceita como sendo válida pela simples razão que a existência à qual chamamos de Gnose Divina ou Doutrina Secreta é completamente irreconhecível. Há trabalhos sobre assuntos espirituais, experiência religiosa e mesmo sobre os Mistérios que não possuem este sentido interno. Eles podem ser trabalhos altamente inspirados, contudo somente simplesmente estruturados. Por outro lado, temos trabalhos como os dramas de Shakespeare que o mundo não reconhece como literatura “espiritual”, mas que, em virtude de sua dupla estrutura, cultuam um compêndio de Sabedoria Iniciática só comparável a das sagradas escrituras. Daí, a Bíblia Laica. A verdadeira autoria dos trabalhos que levam o nome de Shakespeare pode ser percebida atrás do véu que esconde os Guardiães dos Mistérios. Lá, podem ser encontrados os Iluminados da raça, os custódios da Sabedoria Sem Idade, donos da verdade que liberta o homem. Lá, irreconhecíveis e desconhecidos para a maioria da humanidade, está aquele grupo de exaltados Seres, a quem chamamos de Irmãos Maiores, que realizam no mundo, de tempos em tempos, através de adequados e qualificados instrumentos humanos, revelações muito necessárias para seu desenvolvimento. É neles que devemos procurar o altíssimo impulso criativo que se manifestou na Europa como Renascença e encontrou sua primeira expressão inglesa nas brilhantes luzes literárias da Era Elizabetana - o maior deles foi Shakespeare. Então, Shakespeare transforma-se num elo da cadeia de mediadores inspirados através dos quais a raça humana adquire posse de um conhecimento sempre crescente dos divinos Mistérios. As obras de Shakespeare, assim como os dramas musicais de Wagner, o Fausto de Goethe, a Divina Comédia de Dante e muitos outros livros de igual valor, são designados esotéricos, embora de leitura exotérica. Eles são comunicações diretas dos centros planetários da Divina Sabedoria. No caso de Shakespeare, a fonte foi a Escola Rosa Cruz da Sabedoria Ocidental. Para o esoterista, nenhuma outra evidência disto é necessária senão os trabalhos mesmos. Mas, sinais específicos, ocultamente transmitidos, estão também presentes nos dramas. Em “Love´s Labour´s Lost” (Trabalhos de Amores Perdidos), uma cena completa é dedicada à revelação da conexão Rosacruz, mas está tão engenhosamente envolvida na brincadeira das palavras que só possuindo a chave para o seu significado velado se poderá ler corretamente. A cena se fecha com um comentário dirigido ao “Goodman Dull”, representante da multidão que nada percebe e que durante toda a cena não falou uma só palavra. “Não”, vem sua resposta, “ nem entendi nada”. Shakespeare foi chamado de “A Máscara Rosacruciana”. Max Heindel é a autoridade para a citação de que as obras que trazem o nome de Shakespeare e aquelas que trazem o nome de Bacon foram influenciadas pelo mesmo Iniciado Rosacruz. Outros escritores ocultistas apontam para uma conclusão similar. Na classe de literatura que aqui descrevemos, os dramas de Shakespeare se mantêm supremos. Não são trabalhos religiosas. Não são cristãos, nem budistas ou escrituras hindus. Eles são o que chamamos de dramas seculares ou peças mundiais, se preferir, mas tão transcendentes em sua beleza e tão luminosos em seu conteúdo interno que têm cativado milhões de espectadores durante suas apresentações ininterruptas nos palcos do mundo desde sua primeira aparição há centenas de anos atrás. As pessoas vêem e lêem as peças por prazer e lazer. Fazendo isso, elas se expõem a uma mágica que, por sua natureza, trabalha no seu interior despertando modelos básicos do bem, da verdade e da beleza, impregnando com impulsos que elevam no caminho em direção a Deus. A influência mágica que esses trabalhos exercem deriva daquele elemento que fluiu para dentro deles vindo de níveis super-humanos. Estes elementos são puramente espirituais. É a sua presença nos dramas que verdadeiramente faz das peças de Shakespeare a Bíblia Laica da humanidade.