quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
o Sutra do Coração
O título completo do Sutra do Coração é o Sutra do Coração da Grande Sabedoria Além da Sabedoria. Sabedoria, aqui, não é o nosso conhecimento comum; é o conhecimento inato, nossa conexão inata e intuitiva como o princípio fundamental que é chamado prajna em sânscrito. No prólogo, Shariputra pergunta ao Buddha como seguir a perfeição da sabedoria, e o Buddha, por sua vez, pede a Avalokiteshvara para explicá-la a Shariputra. Avalokiteshvara está praticando profundamente; uma das traduções realmente diz "seguindo", seguindo profundamente na perfeição da sabedoria. Assim, "praticar" é um boa palavra para "seguir". Ele não está apenas pensando sobre ela, ele é um com ela. Quando sentamos em meditação, estamos praticando profundamente a prajnaparamita e, esperançosamente, quando deixamos a almofada, ainda estamos praticando profundamente a prajnaparamita. Então, há dois aspectos disto: o primeiro é o de há um bodhisattva Avalokiteshvara que está fazendo isto; e nós estamos assistindo a cena.
Mas, realmente, cada um de nós é o bodhisattva Avalokiteshvara, e cada um de nós também é Shariputra. Este é o tipo de diálogo entre os dois aspectos de nós mesmos. Aquele que pergunta e aquele que responde. "Praticar profundamente" significa ser capaz de ver através da superfície.
Em sânscrito, os cinco skandhas são as formas, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Estes são chamados "os cinco fluxos da existência". Geralmente, quando falamos sobre "mim" e "meu", e quando falamos sobre "eu mesmo" e "quem eu sou", estamos falando sobre alguma idéia que temos, algum conceito de "um ser". Quando olhamos para nós mesmos, nossa mente cria alguma imagem, tanto através da visão quanto da audição — através de um dos cinco sentidos — e então decidimos que isso é o que vemos ou ouvimos, etc. Temos um tipo de visão parcial do que esta pessoa é. Mas, realmente, vemos algo em sua total realidade? No Dharma de Buddha, dizemos que não há um eu, não há a natureza de um eu permanente. Este ser que encontramos como nós mesmos, ou como qualquer um, é um "confecção", algo "agregado", constituído pela forma, sensações, percepções, formações mentais (pensamentos de vários tipos) e consciência. Dentre destas cinco categorias, deveria ser encontrado o que chamamos de "ser humano". Mas, dentro dos cinco skandhas, não há um eu permanente, nenhum eu inerente.
"O bodhisattva Avalokiteshvara, quando praticava profundamente a prajnaparamita, percebeu que todos os cinco skandhas em seu próprio ser são vazios, e foi salvo de todo sofrimento." A palavra ou frase importante aqui é "próprio ser". Nada, nenhuma entidade, tem um "próprio ser". Vacuidade significa interdependência. Isto significa para outras coisas também, mas para este propósito significa que nada existe por si mesmo. Se fazemos um bolo, temos farinha, ovos, açúcar, sal etc. Batemos tudo junto e assamos, e então dizemos que temos um bolo. Comemos um bolo, e é um bolo real, comido por uma boca real. Mas o bolo é vazio, e a boca é vazia de um "próprio ser" O que faz o bolo é a boca, e o que faz a boca é o bolo. O que faz o bolo são todos os ingredientes. Então, temos um bolo real, mas o bolo é ilusório. Parece um bolo real. Hoje é um bolo real mas, se você deixá-lo sobre a mesa até amanhã, ou até a próxima semana, não é mais um bolo real. Então, ele tem apenas uma existência momentânea como um bolo. Não apenas os ingredientes, mas o forno faz o bolo, a mesa faz o bolo, a colher faz o bolo, o céu faz o bolo. O bolo é dependente de tudo no universo para sua existência, e ele é uma expressão da vida universal. Do mesmo modo, um ser humano é uma expressão da vida.
Podemos usar a analogia da água e da onda. A água é vida por si mesma, e a onda é uma expressão da água. A onda nada mais é do que a água, e a água nada mais é do que a onda, mas a onda não tem um "próprio ser": seu "próprio ser" é a água. Uma onda é dependente do vento e das condições climáticas para sua existência e, claro, é dependente de um grande corpo d'água. Então, cada onda é uma expressão de um corpo d'água, assim como cada um de nós é uma expressão da própria vida. Isto é chamado "ser vazio", e "ser vazio" também significa "ser cheio". É importante lembrar que, sempre que dizemos algo no buddhismo, o seu oposto também está incluído. Isto é não-dualidade da dualidade. Se você diz "Estou vivo", o "Estou morto" também está incluído. Se você diz, "Estou morto", o "Estou vivo" também está incluído. Caso contrário, você cai na dualidade e você vê apenas de maneira parcial.
Ver as coisas como são completamente é acabar com o sofrimento. Não é que não haja algum sofrimento, a vida é dolorosa. Mesmo que possamos ser salvos do sofrimento, isto não significa que não haja sofrimento ou que não iremos sofrer, mas devemos saber como aceitar esse sofrimento e como aceitar nossa dor, e saber como aceitar nossa alegria. Tudo o que surge, isto é nossa vida. A verdadeira vida é mais importante do que um aspecto qualquer da vida. Se entendemos isto, então podemos apreciar nossa vida, não importa o que aconteça. Isto é a maturidade, e isto é o que experienciamos na meditação. Na meditação dizemos, "Bom, como foi?" "Bem, foi doloroso" e "Foi prazeroso" e "Foi" o que quer que você queira dizer. Mas aceitamos igualmente a cada um desses aspectos. Isto é o que é a meditação. O que quer que venha, é isto. Quando é doloroso, é apenas doloroso. Quando é prazeroso, é apenas prazeroso. Apenas aceitamos cada momento como é, com o que é, com profunda apreciação. Esta visão é o aspecto da iluminação. Então, dizemos que a meditação é não discriminar, não separar e escolher.
"Ó Shariputra, a forma não difere da vacuidade, a vacuidade não difere da forma, o que é forma é vacuidade, o que é vacuidade é forma." Qualquer forma que surge é vazia de um "próprio ser", mesmo achando que o tenha. Você pode ter um copo d'água e, quando o copo está cheio, você diz, "O copo está cheio." Depois de beber a água, "O copo está vazio". Realmente, o copo é vazio, mesmo estando cheio ou não. O copo dá forma à água. A água não tem uma forma especial. Quando ela cai do céu, a chamamos de gota, ou quando atinge a terra, ela cai em regatos, charcos e poças; e os rios e ribeiros correm até o oceano. Quando a bebemos, ela toma a forma de nossos corpos. Ela toma forma dentro de garrafas, e de miríades de recipientes. Ela está em tudo, mas não tem uma forma especial; em qualquer forma que encontre, ela toma essa forma. Este é o segredo da meditação. Mesmo que tivéssemos a forma mais confinada para a meditação, nossas sensações vêm, nossa consciência vem, os pensamentos vêm, as percepções vêm. Tudo o que vem toma essa forma. Nosso corpo toma essa forma, nossa consciência toma essa forma. Nossa meditação é completamente vazia, completamente aberta, assim como a água.
"O mesmo é verdadeiro para as sensações, percepções, formações e consciência". Você aplica a mesma fórmula: as sensações não diferem da vacuidade, a vacuidade não difere das sensações; o que é sensação é vacuidade, o que é vacuidade é sensação. O mesmo é verdadeiro para as formações mentais e para a consciência. No sutra, ele primeiro usa a forma como um exemplo, mas os outros obedecem a mesma fórmula. A consciência não difere da vacuidade, a vacuidade não difere da consciência. Cada um dos skandhas é experienciado do mesmo modo, e cada um deles é vazio de um "próprio ser". Então, o sutra vai falar sobre os dharmas: "Todos os dharmas estão marcados com a vacuidade." Não apenas todos os skandhas estão marcados com a vacuidade mas todos os dharmas estão marcados com a vacuidade. Os dharmas, significam "coisas" ou "objetos". Tecnicamente, os dharmas significam formações mentais como a ganância, o ódio, a delusão ou a felicidade; todos os pensamentos, sentimentos e emoções que são associados à mente e às sensações. Mas, em um sentido mais amplo, os dharmas significam "todas as coisas". Isto é com um d minúsculo. Dharma com D maiúsculo significa "ensinamento buddhista", "a verdade", "a lei". Marcas significam "características". Por exemplo, a marca do fogo é o calor. A marca da água é a umidade, e a marca dos dharmas é a vacuidade. A verdadeira marca de todas as coisas é a vacuidade.
"Todos os dharmas estão marcados com a vacuidade, não aparecem nem desaparecem, não são impuros nem puros, não aumentam nem diminuem." Apesar de tudo ter uma aparência, não há qualquer coisa que apareça ou desapareça. Esse é o ponto. O que aparece e desaparece é vazio. Com todos os dharmas, apesar de darem a impressão de aparecer e desaparecer, não há uma "coisa" real que aparece e nenhuma "coisa" real que desaparece. Se algo pudesse aparecer e desaparecer, não poderia ser real nesse sentido. Então, todas as coisas que aparecem são reais, mas sua realidade é a sua vacuidade. Se entendemos que todos os dharmas e todos os skandhas são vazios de um "próprio ser", então podemos chamá-los de reais, no sentido de não-substancialidade. Tudo existe apenas por causa de seu oposto. Tudo é dependente de algo mais. Apesar das coisas darem a impressão de aparecer e desaparecer, nada apareceu ou desapareceu porque, definitivamente, as coisas não vêm ou vão.
Falamos sobre as onda na água, "Ó, aquela onda fez um grande tubo e quebrou na praia." Mas, realmente, as ondas apenas vão para cima e para baixo. Acho que isto é um fato científico. A energia move. Quando vemos as coisas sobre a superfície, dizemos, "Ó, isto está se movendo e aquilo está se movendo", mas é a energia que está os movendo, e até mesmo a energia é vazia de um "próprio ser".
Impuro e puro — as pessoas estão sempre procurando pela forma da pureza. Olhamos para o lixo e, então, quando olhamos para a comida, dizemos, "Isto é puro". Ela não tem um certo tipo de pureza. Quando olhamos para o lixo, dizemos, "Isso é impuro" e, comparado com o que é puro, ele é impuro, mas apenas por comparação. Definitivamente, tudo é lixo. Desculpe-me por falar assim, mas como você sabe, tudo é lixo e tudo é puro. Não há qualquer coisa que não seja realmente pura, e não há qualquer coisa que realmente não seja lixo, porque tudo está se decompondo e tudo está vindo à vida e se decompondo. Está se compondo e se decompondo ao mesmo tempo.
Estamos sempre medindo em termos de "mais" ou "menos". Mas "mais" ou "menos" não são apenas termos comparativos. Dizemos que um rato é pequeno e que um elefante é grande, mas uma formiga é ainda menor do que um rato. Então dizemos que um rato é pequeno e que um elefante é grande, mas não é necessariamente assim. É apenas um modo comparativo de falar sobre as coisas por causa da nossa posição. Então, estamos sempre olhando para as coisas em torno do nosso ponto de vista, da nossa posição. O único modo em que podemos realmente conhecer é deixar nossa posição. É muito difícil deixar nossa posição. Assim que começamos a pensar, então a mente começa a discriminar, e discriminar é separar e "dualizar". Estamos continuamente confrontados com o discriminar e dualizar nosso mundo. A dualidade é importante, mas temos que ser capazes de ver o outro lado.
O sutra está falando sobre o outro lado, por isso ele parece tão estranho.
Sojun Weitsman Rôshi.
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