domingo, 28 de março de 2010
ORFEU, ORFISMO E MISTÉRIOS ÓRFICOS.
Orfeu (descendo do morro para a cidade [o inferno]) :
"Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro. No morro sou conhecido – sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração. Há muitos dias busco Eurídice. Todo mundo canta, todo mundo bebe: ninguém sabe onde Eurídice está. Eu quero Eurídice, a minha noiva morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez”.
Orfeu da Conceição – Vinícius de Moraes.
O mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura ocidental, tanto no passado como no presente. A primeira ópera conservada até hoje em sua totalidade é o L’Orfeo de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em 1607. O primeiro balé alemão – Orpheus und Eurydice - foi criado por Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou Orfeo ed Eurídice. No século XIX, Offenbach, não nos legou somente Os Contos de Hoffmann, mas também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi tema para os seguintes musicistas: Liszt, Benda, Paer, Milhaud, Malipiero, Casella, Krenek, Birtwistle e Stravinsky. O cinema, no século XX, apresentou-nos os dois Orfeus (Orpheus [1949] e Le Testament d’Orphée [1959]) de Jean Cocteau e o carnavalesco Orfeu Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes - Orfeu da Conceição, testemunhando a modernidade do tema. Folheando-se os jornais hoje (maio/1999), depara-se com o último filme de Cacá Diegues - Orfeu - e o último livro de Salman ”Versos Satânicos” Rushdie - O Chão Que Ela Pisa - que, segundo a crítica, é um mergulho no universo pop e traz à tona o mito de Orfeu. Já que se passou para a literatura, não se pode deixar de citar o maior poeta lírico grego – Píndaro; Platão na República, no Górgias e no Banquete; as Geórgicas de Virgílio (principalmente o Livro IV); o Paradise Lost (Canto VII) e o L’Allegro (145) de Milton; as Pastorals de Pope; o romântico Novalis e o nosso brasileiríssimo e monumental poema barroco (no dizer de Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção de Orfeu (1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou um termo - cubismo órfico - que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger, Francis Picabia e Marcel Duchamp.
Lendas sobre Orfeu.
Numerosas fontes históricas relatam a existência dos mitos órficos. Tudo leva a crer que não era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.) mas, já no século VI, aparece em algumas tradições. O primeiro escritor grego a fazer menção ao “célebre Orfeu” foi Ibykos em meados do século VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca-o como um dos principais poetas e músicos da época heróica, ao lado de Homero e Hesíodo. Determinou a existência de uma religião especial – o orfismo – e de uma seita – os órficos – que se expandiu por todo o mundo grego e a Itália meridional.
Encontram-se alusões ao mito em Píndaro, Ésquilo, Eurípedes, Empédocles etc. É, contudo, o já citado Platão que o entroniza na República em plena época clássica (século IV a. C.). Ele e os neo-platônicos influenciaram vigorosamente o pensamento cristão. A humanidade herdou três obras comple- tas, numerosos fragmentos e uma longa lista de obras, efetuadas pelo lexicógrafo grego Suidas, atribuídas ao próprio Orfeu.
Orfeu, do grego OrjeuV, é um herói lendário grego dos tempos antigos com extrema habilidade na música, no canto e na poesia e que se tornou o patrono de um movimento religioso ritualizado por um corpus de escritos sagrados que teria sido composto pelo próprio.
Remanescem dúvidas se Orfeu teria sido um personagem histórico. A lenda, contudo, reza que teria nascido na Trácia e era filho de u’a Musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica e a mais importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra versão, apresenta-o como filho do próprio Apolo.
Orfeu é considerado como o maior músico da antigüidade, não só pela música como pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara, pois, até mesmo esta, teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele, pois aumentou-lhe o número de cordas, de sete para nove, numa homenagem às Nove Musas. Seus acordes eram tão melodiosos que os homens e os animais quedavam paralisados para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização. Iniciado nos ‘mistérios’, completou sua formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito, divulgou na Hélade a idéia da expiação das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos, prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.
Juntou-se à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do navio Argos no qual embarcaram para a Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio transportou a fina flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se: Jasão, promotor e chefe da empresa, Héracles (que participou só no começo da missão), Argos, Castor e Pólux, Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses, Oileu, pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso poeta Orfeu e muitos outros. Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas oportunidades: seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua música, aos remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do Tosão de Ouro, ao som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das Sereias com o som de seu instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto Euxino, pelas Ciâneas (recifes móveis) também chamadas de Simplégades, por Cila e Caribdes etc. No tocante as Simplégades, seria interessante realcionar seu simbolismo com os ritos de iniciação. Spencer diz que “as Sympleglades, eram duas rochas em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão e os Argonautas tinham de passar em seu barco. As Sympleglades simbolizam a passagem para um outro mundo e têm uma tripla significação: elas representam o guardião do umbral; representam o terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição mundana; quando a passagem é realizada, elas representam a união dos opostos. Quando o homem deseja tranferir-se deste mundo para outro, ele deve passar através de um intervalo sem dimensão e sem tempo, que divide duas forças relacionadas porém contrárias. No momento real da passagem, o herói abraça amabas as forças e deste modo anula os opostos. Nesse preciso momento ele se encontra no outro mundo” (Spenser, pg.31). Mircea Eliade também dedica grandes parágrafos ao simbolismo iniciático das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).
Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice a quem amava perdidamente. Acontece que no dia de suas núpcias, o apicultor Aristeu tentou violar a esposa de Orfeu. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou uma serpente que a picou, causando-lhe a morte. Possuído por um desgosto inconsolável, o poeta deixa de cantar e tocar e permanece em silêncio soturno pela morte da esposa. Resolveu, então, descer às profundezas do Hades, para trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Orfeu desce aos infernos, nos versos imortais de Virgílio e, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal modo o mundo plutônico que a roda de Exíon parou de girar; o rochedo de Sísifo deixou de oscilar; Tântalo esqueceu a fome e a sede e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher os tonéis sem fundo. Às margens do Styx, tange de tal modo sua cítara que Caronte e Cérbero deixam-no atravessar o rio. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, contudo, uma condição penosa: ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos. Enquanto caminhassem pelas trevas infernais, acontecesse o que fosse, Orfeu não poderia olhar para trás, até que o casal transpusesse os limites do império das sombras. Orfeu aceita a imposição e inicia a sua peregrinação. Estava quase alcançando a Luz quando uma dúvida lhe assalta o cérebro: e se tudo não fosse uma enganação dos deuses? E se sua amada não estivesse atrás dele? Acutilado pela incerteza, olhou para trás, transgredindo a ordem dos deuses. Ao voltar-se, viu Eurídice, esvaindo-se para sempre, “morrendo pela segunda vez” Tentou ainda retornar, mas o barqueiro Caronte foi implacável na sua recusa.
Inconsolável, tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas as mulheres da Trácia. Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu foi estraçalhado pelas enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente, afirmava que tinha sido esquartejado pelas Mênades por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de Apolo. Sintomático é que em ambas as versões, nota-se uma certa similaridade com o esquartejamento de Osíris e a junção dos pedaços por Ísis no Antigo Egito. É o tema da degradação do ovo original.
Sua cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos, o nome de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o país com uma grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina, foi dito que o flagelo só terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e lhe fossem prestadas honras divinas. Após longas buscas, um pescador encontrou a cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em homenagem a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se a lira do poeta foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na também no firmamento onde se tornou a Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das estrelas de primeira grandeza. o Mito:
Orfeu dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém salientar que pela cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o inferno. No orfismo, a topografia do Hades está divida em três regiões: i) o Tártaro, a parte mais abissal, profunda, ou seja, infernal, pois os castigos eram cruéis e violentos; ii) o Érebo, com castigos não tão horrendos como o Tártaro e iii) os Campos Elísios, destinados àqueles que, tendo passado pelos horrores dos dois primeiros, aguardavam o retorno.
Ao descer à mansão do Hades, Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo dos vivos se não tivesse olhado para trás, ou seja, mostrou estar ainda, preso ao passado, à matéria, enfim, a Eurídice. “Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante, jamais ‘retorna’. Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo uma catábase [ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após uma morte violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para trás, transgredindo o tabu das direções. Estas, bem como os lados e os pontos cardeais, possuíam, nas culturas antigas, um simbolismo muito rico”
Convém comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 17-26) quando os dois anjos recomendam a Lot que não olhasse para trás quando fugisse com sua família da destruição de Sodoma e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou para trás e foi transformada numa estátua de sal. Este olhar para trás dela representa a volta ao passado, o apego a uma cidade do pecado. A desobediência, tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça do infiel.
Na macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar para trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o interdito do olhar para trás: seja o agricultor ao plantar; a mulher ao fiar o tecido; o coveiro ao abrir a sepultura; os desfilantes ao acompanhar o cortejo fúnebre.
Com a harmonia (em grego, harmonia significa junção das partes) perdida ou rompida, Orfeu não mais podia tanger a lira e o seu canto perdeu a magia. Perdeu tudo: Eurídice, a música, o canto, ele mesmo.
O despedaçamento de Orfeu está ligado a ritos antiquíssimos, pois como se sabe, o neófito ou iniciado, despedaçava um animal e o comia, para significar seu renascimento em Dioniso ou algum deus tribal. O rito frenético de Dioniso, executado pelas bacantes, reflete a originalidade do deus no panteón bem comportado da religião estatal grega. A participação das bacantes demonstrava que Dioniso era um deus das mulheres. Tanto assim que uma delegação de mulheres atenienses, a cada três anos, se dirigia ao campo para serem possuídas pelo charme e a ‘folia’ do deus, longe das cidades, corriam e dançavam ao som de uma flauta, sobre as montanhas e as florestas.
A cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro, também tem um significado lapidar. A cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas culturas, como uma das partes mais nobres e sagradas do ser humano, pois hospedava a alma. Possuir a cabeça de um inimigo, quanto maior a hierarquia maior a honra; era um troféu digno de um rei ou de um chefe tribal. Os deuses somente deram descanso aos mortais depois que foi encontrada a cabeça de Orfeu e lhe foram prestadas honras fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver, pois é o símbolo da voz, do verbo, da imortalidade.
Orfismo.
Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos escritos, principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no seio de suas obras. O orfismo é um movimento religioso complexo onde se detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e obviamente orientais.
O orfismo oscila entre Dioniso, que sempre desejou romper a camisa-de-força da religião tradicional da pólis grega, e Apolo, que corrigia os excessos e os desvairios dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses antagônicos tem um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por ela sua esperança de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína dos valores das religiões homéricas.
Rejeita daquele os ritos, nos quais os iniciados despedaçavam a vítima viva e ainda palpitante, e a consumação imediata da carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente vegetarianos. A antropologia órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o primeiro Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu era filho de Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa Hera, pediu a Zeus que o queria ver com os olhos mortais, o que era um verdadeiro suicídio. Ao se apresentar a Zeus, a mortal não pôde suportá-lo em toda a sua radiante epifania. Morreu carbonizada e o feto foi recolhido por Zeus e agasalhado em sua coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a mando de Hera, após raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em seguida, o devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas. Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua natureza titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu que os Titãs tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém pois de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca, inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é essencialmente soteriológico. Além do mais, o êxtase dionisíaco manifestava-se de modo coletivo tanto quanto o orfismo é, por princípio, individual.
De Apolo, herdou uma componente da catarsis, ou seja da purificação, tão praticada no oráculo apolíneo de Delfos, mas era radicalmente contra a weltanschauung de Apolo. Este comandou a religião estatal com mão-de-ferro, freando qualquer inovação que significasse um rompimento com o métron, tão conhecidos na lição apolínea por excelência: ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’. A inteligência, a ciência e a sabedoria são consideradas pelos epígonos de Apolo como modelos divinos. A serenidade apolínea tornou-se, para o homem grego, o emblema da perfeição. A divergência residia até mesmo na catarsis, enquanto em Apolo, esta visava prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos purificavam-se nesta e na outra vida, visando libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem morrer.
Os órficos substituíram a ‘folia’ dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da prece e da oferenda, a purificação – catarsis – é um dos ritos principais das religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação, entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antigüidade grega, quando se cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime, tinha que ser não só individual como coletiva. Ao contrário dos cultos dionisíacos, os apolíneos eram públicos, pois rejeitavam os mistérios das iniciações e dos ritos secretos. Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas iniciações órficas. Eliade nota uma semelhança entre os ritos apolíneos e os xamânicos, pois ambos procuram o conhecimento, a sabedoria e a exaltação do espírito, ao contrário das histerias (no sentido grego) e das possessões dionisíacas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no além e nas outras reencarnações até a catarsis final.
A semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos aspectos religiosos, é por demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença na imortalidade da alma, a metempsicose, a punição no Hades, a glorificação final da psiqué nos Campos Elíseos, o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações. Por outro lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos esotérico e não se imiscuia em política.
Orfeu é essencialmente um reformador. O orfismo quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia. Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos. Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes criou a lua e o sol, o outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação. Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único. Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso, atribuído a Orfeu, proclama que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”. A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso salientar Dioniso-Zagreus que terá realce fundamental no culto do orfismo.
É importante salientar o carácter monoteísta dessa teogonia que representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos homéricos. O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano, simbolizando a vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico é na parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem, naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades, simboliza a vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa em grego corpo-túmulo). Como conseqüência, a existência encarnada se assemelha mais a uma morte e o falecimento constitui o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’ não é obtida automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos. Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo de animais, a alma vai se purificando. Nesses intervalos reincarnacionistas, a alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os iniciados órficos e os profanos. O mortal comum profano deverá percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar.
São outro artefato importantíssimo no orfismo. As lamelas órficas ou orfo-pita-góricas. Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São, também, todas marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes, enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais. Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados, como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade.
Numa das lamelas encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um caminho da direita e um da esquerda. “À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o Lago da Memória, e os guardiões estarão lá. Diga-lhes... eu sou o menino da Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água fresca que flue do Lago da Memória”. Para a alma que deve retornar a terra para reencarnar-se, essa água do Lethes tem por função não esquecer sua existência terrestre mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da transmigração. O esquecimento não simbolisa mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será novamente projetada no ciclo do devir.
Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar, é aconselhado evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta escrito numa das lamelas: “Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano dos Infernos”. Ao que Persófone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”.
A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério, pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo, simboliza a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se, para os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à vida.
Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas romanas, encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais simbólicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”.
A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs e o pecado original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e do deus grego, Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista.
Para os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento, passando pelos hermetistas até os dias atuais, o Mundo Ocidental teima em não esquecer Orfeu. Se pouco restou dos mistérios órficos, a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo.WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO.
BBibliografia:
BRANDÃO, Junito de Souza, Mitologia Grega, 3 vols., Ed. Vozes, Petropólis, 1987.
COMMELIN, P., Nova Mitologia Grega e Romana, Ediouro, Rio de Janeiro, s/d.
COSTA, Hippolyto Joseph da, The Dionysian Artificers, London, 1820.
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