segunda-feira, 1 de abril de 2013

Gibran Khalil Gibran.

( 1883 – 1931 ) Gibran Khalil Gibran nasceu no Líbano no final do século XIX, terra então dominada pelo Império Turco Otomano, há milênios conturbada e há milênios preocupada com o fenômeno filosófico e religioso. Com o crescimento do perigo fascista para a região, lá conhecido como “sionismo”, mudou-se para os EUA, ali radicando-se desde o início do século passado (caramba, somos todos do século passado!) e tornando-se uma das principais referências intelectuais para o conhecimento da alma do povo muçulmano, druso, maronita ou cristão ortodoxo em geral, libaneses em particular. Aos 14 para 15 anos tornei-me leitor ávido de sua obra, mais ou menos como os jovens hoje lêem “Senhor dos Anéis” ou “Harry Potter”, com a enorme vantagem, a meu juízo, de os escritos de Gibran trazerem sempre alguma mensagem importante para nós, algo que nos marca o horizonte existencial por toda uma (ou mais) existência! Ultimamente tenho estado mais propenso a reflexões perenes que as superficiais, políticas... Reproduzo, a título mesmo de “isca”, textos de três de suas obras mais admiráveis: “O Louco”, “O Profeta” e “Temporais”. Com a palavra o Grande e Admirável Poeta: O Louco. Meu Amigo. Dos Filhos. Da Dádiva. O Poeta. O Louco. Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!” Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!” Assim me tornei louco. E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós. Meu Amigo Meu Amigo, não sou o que pareço. O que pareço é apenas uma vestimenta cuidadosamente tecida, que me protege de tuas perguntas e te protege da minha negligência. Meu Amigo, o Eu em mim mora na casa do silêncio, e lá dentro permanecerá para sempre, despercebido, inalcançável. Não queria que acreditasses no que digo nem confiasses no que faço – pois minhas palavras são teus próprios pensamentos em articulação e meus feitos, tuas próprias esperanças em ação. Quando dizes: “O vento sopra do leste”, eu digo: “Sim, sopra mesmo do leste”, pois não queria que soubesses que minha mente não mora no vento, mas no mar. Não podes compreender meus pensamentos, filhos do mar, nem eu gostaria que compreendesses. Gostaria de estar sozinho no mar. Quando é dia contigo, meu Amigo, é noite comigo. Contudo, mesmo assim falo do meio-dia que dança sobre os montes e da sombra de púrpura que se insinua através do vale: porque não podes ouvir as canções de minhas trevas nem ver minhas asas batendo contra as estrelas – e eu prefiro que não ouças nem vejas. Gostaria de ficar a sós com a noite. Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno – mesmo então chamas-me através do abismo intransponível, “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada”, e eu te respondo: “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada” – porque não gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno. Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho. Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio. Tu és perfeito – e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender? Meu caminho não é o teu caminho. Contudo juntos marchamos, de mãos dadas. Dos Filhos. E uma mulher que carregava o filho nos braços disse: “Fala-nos dos filhos.” E ele disse: Vossos filhos não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E, embora vivam convosco, a vós não pertencem. Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, Pois eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; Pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho. Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis faze-los como vós, Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados. Vós sois o arco dos quais vossos filhos, quais setas vivas, são arremessados. O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com Sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe. Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria: Pois assim como Ele ama a flecha que voa, ama também o arco, que permanece estável. Da Dádiva. Então um homem opulento disse: “Fala-nos da dádiva.” E ele respondeu: “Vós pouco dais quando dais de vossas posses. É quando dais de vós próprios que realmente dais. Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã? E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa? E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade? Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável? Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas. E há os que têm pouco e dão-no integralmente. Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam. E há os que dão com alegria, e essa alegria é já a sua recompensa. E há os que dão com pena, e essa pena é o seu batismo. E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria nem pensar na virtude: Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço. Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo. É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido; E para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar. E existe alguma coisa que possais guardar? Tudo o que possuís será um dia dado. Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros. Dizeis muitas vezes: “Eu daria, mas somente a quem merece”. As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos. Dão para continuar a viver, pois reter é perecer. Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais. E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego. E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber? E quem sois vós para que os homens devam expor o seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu amor-próprio rebaixado? Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom. Pois, na verdade, é a vida que dá à vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, são meras testemunhas. E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não assumais encargo de gratidão a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores. Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas; Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.” O Poeta. Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei. Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz. Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio. Sou um estrangeiro para o meu corpo. Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem. Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem gritando: “Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude.” Fujo deles. Mas encontro outro grupo de moças que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: “É surdo como a pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo.” Deixo-as correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: “É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua.” Fujo deles com medo. E encontro um grupo de anciãos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: “É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros.” Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim. Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos. Se sair à luz, a sombra de meu corpo me segue, e as sombras de minha alma me precedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo. E quando chega a noite, volto para a casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos. Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis. À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda resposta um sorriso. Quando procuro segura-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça. Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um estrangeiro e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma de minha alma... Caminho na selva inabitada e vejo os rios correrem e subirem do fundo dos vales ao cume das montanhas. E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas. E as aves do céu voam, pousam, cantam, gorgeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelos soltos e pescoços esticados. E olham para mim com paixão e sorriem com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos. Sou um estrangeiro neste mundo. Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria.

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