quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
O Pássaro Azul da Felicidade. António de Macedo.
Muito se tem dito e escrito sobre tal coisa, lembro-me por exemplo dum livro que me impressionou vivamente na minha juventude, A Conquista da Felicidade, de Bertrand Russell. Nele o autor reflecte sobre um certo número de fardos que oprimem os homens e as mulheres e os impedem de ser felizes, como a inveja, o egoísmo, o espírito de competição, o sentimento de culpa, as opressões sociais, e outros, e apresenta um conjunto de prescrições e conselhos para se adqurir — ou readquirir — o gosto de viver. Indignado contra as imposições da ética burguesa dos tempos em que escreveu, Russell não se esquece de nos alertar contra a concepção ortodoxa do pecado que leva a fazer às escondidas o que se proíbe às claras, nomeadamente no que concerne à sexualidade, com todo o rol de culpabilidade, dor e desacertos provocados por uma moral hipócrita, egocêntrica e castrante, e desajustada no seu confronto com os instintos mais livres e as aspirações mais secretas e quiçá mais legítimas do homem e da mulher dignos de si próprios. (Bom, hoje descambámos no extremo oposto, o excesso de «puritanismo vitoriano» do século xix e da primeira metade do século xx deu lugar ao actual permissivismo do «vale tudo e à vista de todos», em matéria de sexo. Não penso que seja uma melhoria nem uma libertação no verdadeiro sentido: basta ver o monstruoso cortejo de disfunções emocionais e psíquicas de toda a ordem que avassalam e atormentam os países ditos mais avançados. O ideal é saber encontrar e praticar a intersecção entre a responsabilidade e a gnose da verdadeira sacralidade do amor).
No entanto, por muito crucial que este aspecto seja e muito pese, não é por aí que vai o gato às filhós, como se costuma dizer; há missionários que preferem ir iluminar almas para terras longínquas, no entanto mesmo ao pé da nossa porta estão o enfermo, o abandonado, o melancólico e todos os que sofrem duma maneira ou doutra.
Onde o amor pelo nosso próximo? Onde o desapego de si? Onde o olhar compassivo e transbordante de calor fraterno ao longo da mão estendida para ajudar?
Na fase infantil, o ser humano estende a mão, de facto, mas é para receber e a sua palavra predilecta é «dá-me!», e a maior alegria que se pode proporcionar à criança é a chegada do Natal ou do dia dos seus anos para receber presentes. Na fase verdadeiramente adulta, e autoconsciente, a corrente inverte-se e a maior alegria dum espírito elevado é ofertar — por isso se diz que a maneira mais segura, mais rápida e mais radiante de ser feliz é pensar menos em si e fazer mais pelos outros.
O pior é que os adultos, em sua esmagadora maioria, permanecem teimosamente apegados à fase infantil, por isso não admira que sejam infelizes: o egoísmo prolongado para além da infância é fonte de extrema insegurança, o discernimento falha, o medo sobrepõe-se ao amor e o interesse próprio ao bem alheio. O desajuste é total porque quem assim se descaminhou vê-se de súbito rodeado de inimigos, ou pelo menos de competidores, e por isso o poeta brasileiro Vicente de Carvalho bem podia dizer, com lapidar desencanto:
A felicidade está onde a pomos,
mas nunca a pomos onde nós estamos.
A felicidade não é um fim em si, é uma consequência: não estamos neste mundo para alcançá-la a todo o custo, mas para aprender, e o caminho que conduz à perfeita alegria — a tal «perfeita alegria» cantada pelo Poverello — começa quando aprendemos a dar o estrito valor, e não mais do que esse, às posses materiais, compreendendo que a prosperidade não se equaciona apenas com uma grande conta bancária ou uma boa marca de automóvel, mas consiste antes de mais nada em ter a consciência do Cristo Interno permitindo que esse Divino Amor se difunda e se irradie através de nós, ou seja, em saber que dispomos de todos os meios, sobretudo espirituais, para usufruir os dons da natureza e sermos capazes de partilhá-los.
No Serviço de Templo da Fraternidade Rosacruz reza-se uma oração muito bonita que o diz duma forma singela, e da qual me permito transcrever algumas estrofes:
Não mais luz, Senhor, Vos peço,
Mas olhos para ver a existente,
Nem canções mais doces; mas, se o mereço,
Ouvidos para ouvir o som presente.
Nem mais forças, mas apenas como usar
O divino poder que já possuo;
Nem mais amor, mas o dom de transformar
Num gesto de carícia um esgar de amuo.
Nem mais alegria, Senhor, mas sim sentir
No meu íntimo a sua cálida presença,
Para poder aos demais distribuir
Quanto tenho de coragem e bem-querença.
Não mais dádivas, amado Deus, Vos peço,
Mas apenas o saber e a inspiração
De espalhar à minha volta com sucesso
As que tenho a transbordar do coração…
A sabedoria popular ensina-nos coisas muito sérias e quase sempre de um modo simples e expressivo, às vezes aparentemente banal, como acontece com a generalidade dos contos tradicionais; estou-me a recordar de um desses contos, intitulado, se a memória não me atraiçoa, A camisa do homem feliz, e onde se descreve o drama dum príncipe que vivia rodeado de riquezas e de fausto e duma corte que rastejava a seus pés para lhe realizar todos os desejos, mesmo os mais extravagantes, e no entanto era o homem mais infeliz do mundo. Nada o satisfazia, nem vastos domínios, nem tesouros, nem conquistas, nem belas princesas, tudo o enfastiava e arrastava-se pelos salões e pelos jardins do seu palácio com um sofrimento mortal e um tédio infinito na alma. Vieram os mais conceituados médicos dos confins do reino mas nada do que receitaram resultou; por fim, alguém lhe indicou um velho sábio e feiticeiro que vivia escondido numa gruta quase inacessível numa montanha distante, conhecedor das artes secretas e capaz dos maiores prodígios.
O velho sábio ouviu-lhe as queixas com atenção e disse:
— O mal de Vossa Alteza tem cura. Não precisa de tomar nenhum desses medicamentos que lhe foram receitados; para se curar, bastar-lhe-á vestir a camisa dum homem feliz.
O príncipe mandou convocar os seus súbditos, desde a fidalguia aos rurais, passando por burgueses, comerciantes, marinheiros, para descobrir um que lhe pudesse fornecer a ambicionada camisa, e constatou, perplexo, que por muito feliz que um ou outro aparentasse ser, no fundo havia uma ambição insatisfeita, ou uma inveja, ou uma contrariedade, ou uns ciúmes ocultos, ou um rancor contra um inimigo real ou imaginário, ou uma vergonha inconfessável, ou algum medo disto ou daquilo…
Em desespero e quase a desistir, o príncipe, cavalgando um dia numa caçada, perdeu-se numas brenhas perto da fronteira do seu reino e foi parar à cabana dum lenhador. Convencido de que tinha deparado com o último homem que lhe faltava investigar, perguntou-lhe se era feliz. O lenhador respondeu que sim, abrindo-se num sorriso cordial e franco, e explicou-lhe: não trabalhava a pensar em si mas no bem-estar das pessoas a quem fornecia a lenha, a natureza dava-lhe tudo quanto precisava, os animaizinhos da floresta eram os seus amigos fiéis, não invejava ninguém e tocava música numa flauta quando acabava o trabalho ao fim do dia. O príncipe, exultante, pediu-lhe a camisa, propondo-se pagar-lhe por ela a quantia que ele exigisse. O lenhador abriu ainda mais o sorriso radioso e confessou:
— Não tenho camisa!
Então o príncipe compreendeu a clara finalidade da sua demanda: demonstrar-lhe que a maioria das pessoas é tão infeliz como ele, e por motivos tão interesseiros quando não apenas tão fúteis e inconsistentes, e que afinal não é preciso ter camisa, ou o que quer que ela represente, para se ser feliz.
Por vezes a busca da felicidade assume a forma romântica duma busca do inatingível, como por exemplo a procura da misteriosa «flor azul» em que se empenhavam os poetas do Romantismo alemão, inspirados no jovem Heinrich, também ele poeta, protagonista do romance Heinrich von Ofterdingen, de Novalis (1772-1801), publicado postumamente em 1802. A Flor Azul constitui a imagem central das visões desse jovem poeta, das suas aspirações e dos seus anseios, pois só ela poderá torná-lo feliz ao libertar a sua amada Mathilde do encantamento, fazendo-a ressuscitar… mas tal não é fácil e a questa é longa e perde-se por sinuosos e fantásticos itinerários. Apenas num sonho consegue vê-la pela primeira vez: «À sua volta, um sem número de flores ostentava seus variegados tons, e um perfume dos mais deliciosos enchia de fragrâncias o ar. Ele, todavia, só tinha olhos para a Flor Azul, e longo tempo ficou a contemplá-la, tomado de uma indescritível ternura».
A associação da felicidade à impossibilidade, e a associação da impossibilidade à cor azul, seja na Flor Azul dos Românticos alemães ou na Rosa Azul dos antigos Hermetistas — ou no Pássaro Azul dos mitos orientais —, fez com que a cor azul, que é a cor do céu, se tornasse símbolo duma distância mítica que esconde a verdadeira e concreta felicidade que afinal se encontra tão à nossa beira… Deus está em nós, mais perto que os nossos pés e mãos, mais perto que a nossa respiração…
Gostaria de vos resumir uma curiosa história escrita pelo poeta místico James Dillet Freeman, que nos fala destas coisas e se intitula, precisamente, O Pássaro Azul da Felicidade. Poeta, escritor e conferencista, autor de inúmeras obras traduzidas em várias línguas, jubilado em 1999 por ocasião do seu 87.º aniversário — nasceu em Wilmington, Delaware, EUA, em 1912 —, Freeman faz parte do quadro permanente da Unity School of Christianity desde 1933, e a ele se devem dois poemas-orações que neste momento se encontram depositados na Lua, uma distinção de que mais nenhum outro autor se pode enaltecer! A sua Prayer for Protection, composta em 1941, foi levada para a Lua na Apollo 11, em Julho de 1969, pelo astronauta Edwin E. Aldrin Jr., que a transportou consigo durante o seu histórico passeio lunar:
A luz de Deus circunda-me;
O amor de Deus envolve-me;
O poder de Deus protege-me;
A presença de Deus vela por mim;
Onde quer que eu esteja, Deus está!
O seu outro poema-oração I Am There (1947) foi deixado na Lua, em microfilme, pelo astronauta James B. Irwin em 1971, durante o voo da Apollo 15.
A tal história escrita por Freeman, a que aludi, começa por nos apresentar o protagonista, um homem igual a tantos outros como qualquer um de nós, que ia arrastando uma vida nem feliz nem infeliz; um dia viu anunciada uma conferência sobre o Pássaro Azul da Felicidade, que seria proferida no anfiteatro da Biblioteca local por um filósofo de renome. Foi ouvi-la e ficou preso às palavras do orador, que falava como quem tinha real experiência do que dizia e que repetia de vez em quando, durante a conferência: «Quem encontrar o Pássaro Azul da Felicidade, será realmente feliz!»
Tão impressionado ficou que sentiu despertar em si um sentimento desconhecido, e o anseio por algo indefinível em que nunca pensara apresentou-se-lhe como uma verdade evidente. Descobriu então o maior e mais profundo desejo da sua vida: encontrar o Pássaro Azul da Felicidade. Tratou de se informar, meteu-se na Biblioteca e leu artigos e livros, estudou tratados, e, cá fora, prestava a maior atenção aos pássaros que voavam nos parques, nas alamedas, e em torno das árvores do seu quintal. Havia-os de todas as cores e feitios, mas nenhum se ajustava à descrição que ouvira ao conferencista. O homem entristeceu-se e os amigos procuravam consolá-lo, dizendo:
— Não desanimes! Talvez seja azul cobalto ou, quem sabe, um azul forte, mais escuro!
O homem compreendeu a boa intenção dos amigos mas não se conformou. Para se distrair começou a construir uma gaiola belíssima, ricamente ornamentada, onde viveria o seu Pássaro Azul, perto de si e tratado com todo o carinho. Um dia, na Biblioteca, e em conversa com um jovem estudante, este informou-o:
— Já vi pássaros iguais a esse, num bosque da montanha.
O estudante saiu à rua com o homem e indicou-lhe um ponto na serra que se via ao longe, muitos quilómetros além dos limites da cidade.
O homem, num alvoroço, foi buscar a carrinha e encheu-a com materiais de acampamento, ferramentas e víveres, e partiu para a montanha. Lá em cima construiu uma barraca e dispôs-se a encetar uma pesquisa meticulosa. Ao fim de sete dias de buscas aturadas descobriu finalmente uma clareira onde esvoaçavam, alegres, muitos pássaros azuis, tal e qual como o conferencista descrevera. O seu contentamento não teve limites, e, ao ver que eram mansos e amigáveis aproximou-se e tentou agarrá-los, mas fugiam mal o viam perto de mais. Então voltou ao acampamento e preparou umas armadilhas que dispôs na clareira, ficando à espera.
Ao cabo de várias tentativas conseguiu apanhar um deles, o mais belo de todos. Segurou-o com todo o cuidado e regressou à cidade, e, assim que chegou a casa, meteu o Pássaro Azul na esplêndida gaiola. A gaiola era maravilhosa mas o pássaro parecia infeliz, e não tocou em nenhum dos alimentos que o homem lhe pôs, nem mesmo os mais apetitosos. Ao fim de três dias, receando que a ave morresse de fome, o homem, embora pesaroso, soltou-a.
Mas o Pássaro Azul não regressou de imediato à montanha. Estaria fraco? Não, agora mostrava-se feliz, no galho mais alto da árvore mais frondosa do quintal. E começou a cantar, emitindo um misterioso pio, suave e contínuo: tuit… tuit… tuit…
Aquele piar, ou aquele canto, desencadeou ressonâncias enfeitiçantes na alma do homem, o canto não era repetitivo nem uniforme, modulava-se magicamente, e o homem sentiu uma necessidade íntima e desgarradora de saber o que aqueles sons significavam…
De súbito — seria alucinação? — começou a entender o que o Pássaro dizia:
— Queres possuir a felicidade? Terás de aprender que a felicidade há-de ser livre, para que a possuas. Agora que me conheces, já te pertenço para sempre.
O homem ainda pensou que o Pássaro Azul iria regressar à gaiola de livre vontade, mas em vez disso pôs-se a voar à volta dele, cantando:
— Quando quiseres encontrar-me, liberta o teu coração de pesos inúteis, relaxa-te, aquieta o espírito e vai ter comigo à clareira da montanha. Estaremos juntos todos os dias. Mas é preciso que me arranjes um cantinho no teu coração, onde me alimentarás de amor. Então, ouvir-me-ás de novo, entoando o Cântico da Felicidade!
O Pássaro Azul foi-se embora mas alguma coisa ficou. Algo que não era visível nem exterior ficou para sempre na alma do homem. A sua vida mudou e todos notaram a milagrosa transformação que nele se operara. Cantava enquanto trabalhava, e muitas pessoas eram atraídas porque ele tinha sempre algo para dar. Todos se sentiam bem na sua presença, e nas horas de folga calava-se e recolhia-se em silêncio. Descobriram que era nesses momentos que ele visitava a clareira e se reabastecia de fé, de luz e de alegria.
Um dia os amigos perguntaram-lhe:
— Que significa aquela gaiola vazia lá fora, com um letreiro: «Aqui mora o Pássaro Azul da Felicidade»?
O homem respondeu, sorrindo:
— É preciso ter a gaiola vazia para o encontrar e para possuí-lo verdadeiramente. Só se pode possuí-lo em liberdade, porque ele pertence a todos!
Os amigos ponderaram:
— Temos a certeza que o encontraste, porque o vemos em ti!
Ao que ele replicou:
— Se quiserem, posso ajudar-vos a encontrá-lo, também…
A história acaba sem dizer se eles tinham um coração bastante espaçoso e sem grades, onde pudesse voar livremente o Pássaro Azul da Felicidade.
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