quarta-feira, 30 de março de 2011

A Lenda Maravilhosa.


A propósito do sentido da palavra "sacerdócio", vamos transcrever uma passagem do famoso poema de Longfellow A Lenda Maravilhosa.

"Ajoelhado nas lajes da cela, o monge rezava contrito. Acusava-se a si mesmo do pecado de indecisão. Pedia forças para resistir com mais altruísmo às provas e tentações. Era meio-dia e estava só.

De repente, como um relâmpago, um esplendor inusitado brilhou dentro e fora dele. Encheu de glória a sua estreita cela de pedra. Teve uma visão. Viu-se rodeado por uma luz celestial que o envolvia como se fosse uma veste, como um vasto manto que o rodeasse".

Não era decerto o Salvador dolorido, mas o Cristo dando de comer aos famintos e curando os enfermos.

"Em atitude implorante e com as mãos cruzadas sobre o peito, maravilhado, admirado e em adoração, estava o monge, prostrado e em êxtase profundo.

E, durante a exaltação, ouviu repentinamente a chamada do sino convento. Soou com uma violência que nunca tinha notado".

O sino chamava-o para cumprir a sua tarefa: alimentar os pobres. Era o esmoler da comunidade.

"Na sua adoração encheu-se de tristeza. Vacilou. Não sabia que fazer. Cumprir o seu dever ou deixar-se ficar ali? Deveria deixar os pobres famintos à espera, na porta do convento, até que a visão se desvanecesse? Ou seria melhor trocar o seu visitante celeste por aquela multidão esfarrapada de mendigos depravados que estava na portaria do convento? A visão esperaria por ele até regressar à cela? Voltaria mais tarde? Então, ouviu uma voz interior. Era tão clara e perceptível como se ressoasse nos ouvidos: ‘Cumpre o teu dever, que é o melhor, e deixa o resto nas mãos do Senhor’.

Levantou-se num instante. Dirigiu um suplicante olhar para a bendita visão, inclinou-se e, arrastando-se pela cela, saiu para cumprir a sua missão.

Os pobres esperavam na portaria. Tinham no olhar aquela expressão de terror própria que de quem se habituou a ouvir o som das portas que os indiferentes lhes fecham e se familiarizou com o desprezo e com o sabor do pão não comido. Mas hoje, sem saberem porquê, era como se as portas do convento fossem as do paraíso. O pão e o vinho sabiam-lhes a um divino sacramento. O monge fazia a sua oração do coração. E pensava no sofrimento dos pobres sem lar, dos que se vêem e dos que não se vêem. E a voz fez-se ouvir de novo: ‘Aquilo que fizeres ao mais pobre e miserável, é como se o fizesses a mim mesmo’.

A mim? Mas se a visão se lhe tivesse apresentado com o aspecto de um mendigo esfarrapado, tê-la-ia recebido de joelhos e em adoração, ou ter-se-ia afastado dela troçando?

Assim o interrogava subtilmente a consciência. Terminada a tarefa, regressou em passo rápido à cela. Reparou como o convento resplandecia, envolto numa luz sobrenatural. Parecia que uma nuvem luminosa se estendia do telhado ao solo.

À soleira da porta da cela quedou-se, imóvel de espanto. A visão ainda ali estava. Não tinha mudado. Era como se ali tivesse permanecido à sua espera durante todo aquele tempo.

Com o coração exultando de alegria, compreendeu então a mensagem daquela bendita visão:

"Se não tivesses cumprido o teu dever, eu já aqui não estaria".

A história repete-se agora uma vez mais, tal como naqueles tempos remotos. As pessoas insistem em correr de um lado para outro à procura da luz. Há mesmo quem chegue a viajar até aos confins do mundo, como fez o Cavaleiro Launfal, perdendo o precioso tempo da sua vida à procura do que julgam ser "espiritualidade", sem mais nada encontrar do que desenganos atrás de desenganos. O próprio Launfal, que passou toda a vida à procura do Graal fora de casa, encontrou-o finalmente, e sem dificuldade, na soleira da porta do seu castelo. E o mesmo acontece com todos os que honestamente procuram a espiritualidade: encontra-la-ão no seu próprio coração. O único perigo é o de a não reconhecerem, como acontecem àqueles que se deslocaram ao país da luz. Ninguém consegue reconhecer a verdadeira espiritualidade nos outros se não a tiver desenvolvido já, de alguma forma, em si próprio.

Parece, pois, conveniente definir desde já o que é a "espiritualidade", para termos uma orientação que nos permita identificar este atributo crístico. Para lá chegarmos sem risco de fracasso temos de pôr de lado eventuais preconceitos. A ideia corrente que está na base da noção de espiritualidade é que a sua essência é a oração e a meditação. Todavia, se prestarmos atenção à vida do Salvador, veremos que ele não foi um contemplativo. Jesus nunca se enclausurou; não fugiu nem se ocultou do mundo. Pelo contrário. Envolveu-se com as gentes e ajudou-as nas suas necessidades diárias, deu-lhes de comer quando foi necessário, curou os seus males sempre que teve oportunidade – e ainda lhes ministrou ensinamentos. Ele foi, desta forma, na verdadeira acepção do termo, um servidor da Humanidade.

O monge da história viu-O assim mesmo durante o êxtase espiritual. Foi nesse preciso momento que soaram as doze badaladas chamando-o para o cumprimento do seu dever – que era o de imitar Cristo: encarregar-se da alimentação dos pobres que o esperavam na portaria do convento. Terá sido grande, na verdade, a tentação de se deixar ficar na cela, de se banhar naquelas vibrações celestiais. De outro modo, a voz não se teria feito ouvir: "Cumpre o teu dever, que é o melhor que tens a fazer.". Como teria conseguido adorar Aquele que tinha alimentado os pobres e curado os enfermos se, ao mesmo tempo, os abandonasse, famintos como estavam, à sua espera, na portaria do convento? A sua permanência na cela teria sido um erro. E a visão confirmou-o dizendo-lhe ao regressar: "Se não tivesses cumprido o teu dever, eu já não estaria aqui".

O seu primeiro impulso, egoísta, teria sido absolutamente contrário ao fim a que se propunha alcançar. E se não fosse cumpridor nas pequenas coisas, relacionadas com os seus deveres terrenos, como se poderia imaginar fiel noutras, mais importantes, de natureza espiritual? Naturalmente, a menos que fosse capaz de sair vitorioso da prova, não lhe seriam dados maiores poderes.
Max Heindel.

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