quinta-feira, 16 de abril de 2015

A MÚSICA DAS ESFERAS.

A MÚSICA DAS ESFERAS. Por Margarete Hülsendeger ⋅ O frio era intenso. A neve, que não parava de cair desde o dia anterior, acumulava-se pelas ruas. Dentro do quarto, no entanto, em uma pequena lareira, o fogo crepitava de forma reconfortante, diminuindo a sensação de frio. Na mesa velha e desconjuntada, um homem inclinava-se concentrado sobre diversos papéis. A barba por fazer e as profundas e cinzentas olheiras eram as marcas mais evidentes do seu cansaço. Contudo, apesar dos músculos doloridos, ele se negava a descansar. Distraído, pegou, de um prato colocado sobre a mesa, um pedaço de pão já meio duro. Sem interromper o que estava fazendo começou a mordiscá-lo – esse seria o seu café da manhã. O cosmos se mostrara de uma complexidade fantástica. Nem mesmo Copérnico poderia imaginar o quanto o conhecimento evoluiria após a sua morte. Descobertas impressionantes estavam, em sua opinião, conduzindo a humanidade para mais perto de Deus. Sendo um homem de fé, sentia-se na obrigação de buscar as respostas que melhor explicassem essa complexa organização do universo. Entretanto, as tabelas que ele mesmo elaborara, a partir de suas observações dos céus, não estavam, no momento, ajudando-o a compreender essa nova ordem cósmica. Algo não se encaixava. Sabia que alguma coisa estava faltando. Suas medições haviam comprovado que os planetas giravam a volta do Sol, com suas diferentes órbitas e tempos, em absoluta harmonia. Portanto, seus deslocamentos deviam seguir uma lei e ela, por sua vez, podia ser expressa por uma simples equação matemática. Tinha certeza que as respostas às suas dúvidas achavam-se bem diante de seus olhos. Era-lhe impossível acreditar que Deus – o Divino Geômetra –, em sua suprema sabedoria, construíra o Universo à sua imagem e semelhança para que seus mistérios permanecessem ocultos, longe da compreensão do homem. Empurrando para o lado todos aqueles papéis, debruçou-se sobre a mesa. Fechou os olhos. Se pudesse ver além de todos esses números. Se pudesse encontrar o caminho para compreender o que eles tentavam-lhe mostrar, quem sabe, a vontade de Deus não lhe fosse revelada. Suspirou. Em um crucifixo, na parede em frente à sua mesa, um Cristo de expressão triste e sofredora o encarava. Parecia sentir pena dele. O cansaço acabou vencendo-o e, sem querer, adormeceu. Viu-se caminhando por um velho cemitério. Tratava-se do cemitério onde sua mãe fora enterrada. Entretanto, ele sabia que não estava ali por causa dela. Procurava algo. Com ansiedade crescente ia percorrendo os túmulos, examinando as inscrições gravadas em cada lápide. Nomes, datas e epitáfios de todos os tipos sucediam-se um após o outro, aumentando ainda mais a sua angústia. Estava assim, procurando, quando ele o viu. Encontrava-se afastado dos demais túmulos. Mofo e ervas daninhas o cobriam quase que por completo. Seu aspecto era de total abandono. Aproximou-se bem devagar. Não tinha mais pressa. Quando estava diante dele, ajoelhou-se na terra e leu o que na lápide estava inscrito: Os céus medi, e agora meço as sombras. Meu espírito ao céu sempre esteve preso. E agora preso à terra jaz meu corpo*. E mais abaixo as iniciais J.K. Não ficou surpreso. Na verdade, em seu íntimo, sabia que era isso o que buscava, só não havia ainda tido coragem de reconhecer para si mesmo. Por essa razão, também não se surpreendeu quando, ao seu redor e por todo o espaço, passou a ouvir uma música que, por sua beleza, só podia ser de origem divina. Deixando-se embalar por ela, sentiu, talvez pela primeira vez, uma alegria e paz profundas. E, finalmente, estando tomado por essas emoções, foi capaz de ver. Encontravam-se todos lá – e mais outros que ele não reconheceu –, girando em harmonia em torno do Sol e, como sempre fora a sua convicção, obedecendo a leis que ele agora conseguiu compreender. Quando acordou, a neve havia parado de cair. Abrindo a janela viu que entre as nuvens cinzentas o Sol tentava aparecer. Com a música das esferas – assim resolveu chamá-la – ainda soando em seus ouvidos, entendeu que a morte não podia ser evitada. No entanto, agora compreendia que mesmo que o seu corpo viesse a pertencer à terra, os céus e todos os seus mistérios seriam para sempre o seu verdadeiro lar. * Epitáfio escrito por Johannes Kepler. Astrônomo alemão (1571-1630)

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